Da Assinatura das Coisas – 15.2. A Regeneração

  1. A vontade regenerada, que sai de si mesma para entrar no abandono, é inimiga do eu, como a saúde é inimiga da doença; elas travam uma guerra sem tréguas.
  2. O eu só procura o que pode servi-lo; enquanto que o abandono só deseja a Mãe eterna. O primeiro diz-lhe: “Tu és louco por te abandonares à morte, tu viverias magnificamente em mim”. E o segundo responde-lhe: “Tu és o meu desgosto e o meu tormento, tu só podes conduzir-me para fora da eternidade, para a miséria, para entregar o meu corpo à terra e a minha alma ao inferno”.
  3. O verdadeiro abandono é a morte à repugnância de Deus; aquele que abandona o seu eu e que se entrega com todo o coração, com todos os sentidos e com toda a vontade à misericórdia divina, na morte de Jesus Cristo, está morto para a terra; ele é um ser humano duplo; a repugnância suicida-se nele e a vontade abandonada vive e ressuscita com Cristo; e, apesar de todo o desejo próprio pecar, porque não quer fazer outra coisa, a vontade abandonada vive, não no pecado, mas na terra dos vivos por meio de Cristo, enquanto que o eu vive na terra dos mortos.
  4. O ser humano terrestre tem, pela maldição, horror à santidade de Deus; ele só se consegue buscar a si mesmo, e se faz algo de bom, é a vontade abandonada que o força a isso; ela serve-se dele, como ela própria serve de instrumento à vontade divina.1
  5. Portanto, aquele que desejar alcançar o reino de Deus tem que retirar a sua alma do eu, assim como o médico livra o seu paciente da dor e transforma a doença em prazer do amor, igualmente a vontade terrestre tratada pela alma torna-se na serva da vontade abandonada.
  6. O ser humano elementar e sidérico só deve ser o instrumento do ser humano anímico, foi para isso que Deus o criou; em Adão, a alma tomou-o como mestre e tornou-se sua prisioneira; se ela quiser tornar-se filha de Deus, tem que morrer aos desejos terrestres, renascer à vontade de Deus pela morte de Cristo, reinar sobre o eu e mantê-lo sob controle, porque o eu tende sempre para a sua própria luz, para a multiplicidade, para a inveja e a cólera, se não consegue realizar os seus desejos, e para a mentira.
  7. Mas a vontade abandonada esmaga incessantemente a cabeça dessa serpente e diz-lhe: “Tu nasceste do diabo e da Cólera, eu não quero nada de ti”; e, apesar dela até então ter sido apanhada em falsos desejos quando o diabo oprimia a sua imaginação, ela clama a Deus para que Ele a livre do opróbrio da morte.
  8. Ela não tem descanso neste combate, porque mora numa falsa casa; em si mesma ela está de fato nas mãos de Deus, mas fora de si mesma ela jaz no abismo da Cólera e no reino do diabo. Sempre os demónios a acompanham, sempre procuram crivar a alma. Mas os anjos bons protegem-na contra as imagens venenosas e os dardos inflamados, como diz São Paulo (Efésios, 6,16).
  9. O Amor e a Cólera disputam o ser humano; eles estão dentro dele; ele é tomado por aquele desses dois princípios eternos para o qual ele se dirige. Se a alma reside no eu, está tomada pela Cólera; se ela se lança na misericórdia, nos sofrimentos de Cristo, na sua ressurreição e na sua ascensão, se ela só quer o que Deus quer, ela morre à Cólera e ao eu; o diabo não pode fazer nada contra ela; não é ela que vive, mas é a eternidade que vive nela; ela regressa ao ponto onde ela estava antes de ser uma criatura; ela é um instrumento da sinfonia divina que só o Espírito de Deus faz ressoar para a sua glória.
  10. Todo o movimento próprio é vão, a vontade própria não concebe nada de Deus, mas a vontade abandonada, nada faz senão pelo Espírito, em quem repousa e de quem é instrumento.
  11. Embora o eu possa aprender e fazer muitas coisas, a sua concepção só reside no verbo pronunciado, na forma das letras, e não compreende nada do Verbo pronunciante, porque nasceu do exterior e não da Mãe universal que não tem nem fundo, nem começo, nem fim.
  12. Aquele que nasce do Verbo pronunciante é livre, acima de toda a base; não está ligado a nenhuma forma, porque é a vontade eterna que o conduz, conforme agrada a Deus.
  13. Mas aquele que se apega à letra nasceu na forma do verbo pronunciado, caminha segundo o eu e abandona o espírito que fez a forma.
  14. Um tal doutor é Babel; ele argumenta sobre a forma, de acordo com o seu entendimento pessoal; ele não passa dum bronze sonante, ele não entende nada do espírito e argumenta sem termo ou medida; a reputação e as concepções próprias exteriores não são o Verbo de Deus, mas só o que procede da vontade abandonada segundo o espírito do Verbo falante, e que molda no coração a forma pela qual a alma é atraída para Deus.

Notas

  1. Ver, para todo este capítulo, a doutrina mística dos Padres da Igreja, da Imitação, de Madame Guyon, dos Sufis e do Bramanismo pré-védico. [  ]
[ Anterior ] [ Índice do Livro ] [ Seguinte ]

Início » Textos » Assinatura das Coisas » 15.2. A Regeneração