Da Assinatura das Coisas – 11.3. A Paixão Simbólica de Cristo

  1. Tudo isto não podia ser realizado sem muito trabalho. A propriedade humana, ou o Verbo pronunciado, ainda estava ativa na sua egoidade: o Enxofre humano, que devia ser transmutado em divino, na parte celeste do ser humano. O eu apavorou-se com isto quando, no Jardim das Oliveiras, lutou como Mercúrio pronunciado contra o mundo celeste do Amor no plano humano: Foi o suor de sangue, quando o Amor estremeceu diante da morte onde teve que mergulhar com a essência divina e quando a Cólera viu a morte aproximar-se, por meio desse Amor que lhe ia tirar o poder.
  2. O Amor em Cristo disse: "Se tenho que beber o cálice da tua Cólera, que seja feita a tua vontade"; e a Cólera disse: "Se for possível, afasta de mim este cálice do Amor, para que eu possa inundar o ser humano, por causa da sua desobediência", assim como Deus já tinha dito a Moisés, intercedendo pelo povo, na figura de Cristo (Êxodo, 32,10-16).
  3. Mas o nome de Jesus já estava a começar a encarnar-se no Paraíso, desde a promessa da semente da mulher, com vista à aliança humano-divina; esse nome não abandonou a luta, colocando-se pela sua humildade dentro da fúria do Pai, para que não acendesse mais o Mercúrio semi venenoso do ser humano, como se viu no tempo de Coré (Números, 16) e de Elias (Reis, 1).
  4. Assim, no Jardim das Oliveiras, a Cólera quis apoderar-se do centro ígneo do ser humano e o nome de Jesus desceu nela inteiramente com o Amor e com a essência celeste. O Filho foi obediente ao Pai até à morte na Cruz (Filipenses, 2,8). A humildade e a suavidade do Amor deixaram-se injuriar pela Cólera; os judeus desconsideraram o direito de Deus; porque o pecado tinha vindo pela vontade pessoal e tinha que ser aniquilado por essa mesma vontade pessoal.
  5. Adão tinha introduzido a sua vontade no veneno do Mercúrio exterior: Cristo-Amor tinha que entrar nesse mesmo Mercúrio. Adão tinha-se alimentado da árvore má, Cristo teve que se alimentar da Cólera; isto acontecendo exteriormente na carne e interiormente no espírito.
  6. O mesmo se passa na obra filosófica. O Mercúrio é o fariseu que não suporta a criança; ele tem medo dela; Vénus também treme diante do veneno do Mercúrio furioso e o artista vê o suor desse combate.
  7. Marte diz: “Eu sou o senhor do fogo no corpo, Saturno é a minha força e Mercúrio é a minha vida; eu quero matar o Amor.” É o diabo na Cólera; como não consegue chegar a isso, desperta Saturno (a impressão ou o regime deste mundo) e procura atingir Vénus, mas em vão, porque ela é um veneno mortal para ele.
  8. Mercúrio suporta ainda menos que Vénus o domine. Os sacerdotes previram que Cristo lhes tiraria o seu poder, uma vez que Ele afirmou ser o Filho de Deus.
  9. Mercúrio então inquieta-se com o filho de Vénus; porque esta última está atualmente completamente desvelada; mas ele pode fazer aquilo que ele quiser, ela enfurecerá o dragão, a menos que ele lhe feche a porta; Marte em Mercúrio não entendem isso: eles perfuram a bela criança com as suas flechas envenenadas e a prendem com Saturno; o artista pode ver como eles cercam a cor de Vénus.
  10. Marte primeiro leva a criança a Mercúrio: (a vida) como ao sumo sacerdote para que ele possa examiná-la e testá-la; mas ele ressente-se com ela, ele não a apreende no seu coração, ele julga-a pela sua aparência, semelhante à do Mercúrio, mas com uma outra virtude.
  11. Como, nesta criança, vive um outro Mercúrio, o anterior não pode matá-lo; ele o conduz a Saturno, como os judeus conduziram Jesus a Pilatos; mas como este último governa a impressão, ou treva, ele não se informa sobre a qualidade da criança, mas sobre o seu regime; ele ataca-a com essa impressão e despoja-a da bela veste de Vénus; perante esta visão a Lua esconde-se, como fizeram os discípulos, apesar da sua promessa anterior; porque a Lua é inconstante, ela não tem o coração do Sol no Amor, e Saturno com a sua impressão espinhosa vem sobre a criança com o Enxofre, pai de todas as essências. Saturno envolve a criança num manto de púrpura, a cor do Enxofre. A cólera de Marte está no Enxofre com que a criança está revestida.
  12. Quando este último, criado do diabo, e Mercúrio, orgulho próprio da vida, virem que Vénus vestiu a sua veste real (púrpura de Saturno e Mercúrio, na luz do Sol, avivado pelo fogo de Marte e radiante com a cor sulfurosa do Mercúrio), a matéria assume a tintura de Vénus e o artista deve prestar atenção.
  13. Quando Marte, Mercúrio e a Lua vêem isto, gritam: “Crucifica-o, ele é apenas um ser humano como nós, que tomou injustamente o nosso manto real!” eles dirigem a sua avidez venenosa sobre a criança através da veste púrpura, e o artista vê tudo listrado por Mercúrio e Marte que se agarram a ele por meio de Saturno; o artista verá a coroa de espinhos muito distintamente, enquanto Vénus se entrega com resignação.
  14. Compreendam aqui como Adão se adornou com um falso amor diante de Deus como se ainda fosse seu filho: assim, era necessário que a avidez do amor, apanhada na impressão da morte, fosse adornada com esse mesmo hábito enganador. Cristo, o segundo Adão, tomou tudo isso sobre Si, sofreu os insultos, vestido com uma púrpura insignificante, porque Adão havia se coberto com a púrpura insignificante do poder do mundo exterior na luz do eu; isto tinha que ser representado diante da Cólera de Deus. A túnica branca com a qual Herodes mandou cobrir Cristo é o amor frio e falso sob o qual o ser humano acredita ser um anjo. Assim, o ser humano usa a púrpura e a veste branca de Cristo, isto é, os seus sofrimentos e a sua morte, para adornar a sua hipocrisia.
  15. Cristo teve que vencer a falsidade escondida no ser humano e Deus colocou-o sob a mesma aparência de Adão: o inocente teve que expiar a culpa.
  16. Na obra filosófica, a maldição da Cólera divina que a terra contém deve ser transmutada em Amor. Mercúrio apresenta o filho do Amor a Saturno e como este não pode testá-lo, dá-lhe o manto púrpura para esconder a marca das varas; ele o envia diante do Sol que o reveste com a cor branca lunar, sem brilho; o Sol gostaria que a criança fizesse explodir a luz dourada que ele pressente dentro dela; ele dá-lhe essa cor branca, vinda da liberdade eterna, para que a criança possa acender ali o poder do fogo central: ela seria então semelhante ao Sol, senhor do enxofre de Marte e Mercúrio, mas apenas no mundo exterior como um mestre da Cólera.
  17. Cristo respondeu a Pilatos: "O meu reino não é deste mundo"; a Herodes ele recusou-se a responder, porque ambas as vestes eram falsas; como Adão as vestiu antigamente, Cristo teve que suportá-las: essa é a vergonha do ser humano, criado à imagem de Deus e tornado num falso rei, como o pobre pecador reconhece quando concebe o arrependimento.
  18. Assim, Cristo apresentou, ao seu Pai, o opróbrio do ser humano, e acusou-se disso diante dele em lugar do ser humano. Quando o Pai o viu nessa humilhação, Ele rejeitou essa veste; foi por isso que Pilatos tirou a túnica de Jesus e apresentou-o aos judeus sob o seu verdadeiro aspeto. Mas estes condenaram-no à morte, assim a Cólera do Pai foi extinta. Pilatos condenou-o, porque não quis reconhecê-lo como rei.
  19. Da mesma forma na obra, nem Saturno, nem Marte, nem Mercúrio aceitam a criança, porque ela não pertence à propriedade deles. A criança está em poder deles; eles gostariam de se livrar dela, mas não conseguem, eles enfurecem-se como os judeus e crucificam-no através da matéria. O primeiro prego é Saturno, a impressão ou a Cólera do mundo tenebroso; o segundo prego é Marte, o diabo ou a propriedade da serpente na Cólera; o terceiro prego é Mercúrio, a vida falsa ou a combustão da Cólera no Verbo pronunciado da propriedade humana.
  20. Vénus entrega-se ao Amor e dá a sua vida jupiteriana como se fosse morrer; a força da criança, isto é, a vida mercuriana humana, cai sob os golpes dos três assassinos na casa da sua mãe (a essência corporal) onde o noivo aceitou a virgem, lá onde Deus se fez ser humano.
  21. Este desvanecimento do corpo celeste e do corpo terrestre é representado por Maria e João ao pé da Cruz;1 a vida do noivo desapareceu e a Virgem desvanece n'Ele; assim se separam a propriedade divina e a propriedade humana, como o artista pode ver, se tiver inteligência para isso.
  22. Saturno, Marte e Mercúrio, portanto, penetram na propriedade de Vénus como a Cólera no Amor; e o Amor mistura-se essencialmente com a Cólera e nela inqualifica.
  23. A morte furiosa assusta-se agora diante do Amor que se desvanece neste tormento; a essência celeste flui como sangue, até ao terceiro princípio, que é o noivo.2
  24. Este recebe a pérola da Virgem, Deus e o ser humano tornam-se um; porque o sangue da Virgem vindo da essência divina é infundido no sangue do noivo que é o eu; e os três assassinos dão as suas vidas à Virgem; assim, o fogo e a vida do cavaleiro elevam-se como a Fúria sai da vida, como a suavidade sai do Amor; essas duas essências unem-se na morte; a morte morre no Amor e renasce para a vida divina; porque não é uma morte verdadeira, é um abandono da força e da vontade própria, uma transmutação. O sangue da Virgem transmuta o humano morto em Deus; a vida do esposo morre e a vida da divindade fixa-se no Nada que é a sua propriedade.
  25. Quando tu vires o sangue vermelho do noivo sair da morte com o glúten branco da Virgem, sabe que possuis o arcano do mundo inteiro; é um tesouro que nenhum dinheiro pode pagar, estima-o mais do que todas as coisas mortais; se tu nasceste de Deus, tu compreenderás o que eu quero dizer.
  26. Esta é a imagem de Cristo e o processo que ele usou para extinguir o pecado e a Cólera no ser humano; não é apenas um sacrifício, caso contrário, Moisés o teria realizado; não é um simples discurso como ensina Babel; não, a vontade humana tem que entrar com toda a sua força nesta morte e neste sangue, que é a tintura mais elevada; o manto de púrpura que Cristo deve vestir não pode fazer este trabalho, nem o manto branco dos fariseus mentirosos. As palavras são inúteis; o camarada tem que morrer no sangue de Cristo, tem que ser lavado no sangue da Virgem; a vontade tem que sair inteiramente do seu egoísmo e entrar como uma criança simples na misericórdia de Deus, segundo o sangue virgem de Cristo;3 os pecados e o Mercúrio envenenado no seu Marte, devem ser lavados ali para que apareça o sangue branco do leão; este leão, que agora é da cor branca saindo do vermelho, é o Mercúrio da vida, o Verbo pronunciado, a alma, antes era um diabo reinando na Cólera segundo as três formas da angústia venenosa, agora, é o Leão branco e vermelho da casa de Davi e de Israel, conforme a aliança da promessa.

Notas

  1. Ver Zhora, Études tentatives, Paris, 1903, in-18. [  ]
  2. O terceiro princípio é o mundo físico visível. — O Noivo é, portanto, ou a matéria da Obra hermética, ou o Eu humano, o mental, a personalidade. — Robert Fludd, em passagens isoladas das suas obras, e Lopoukhine em Quelques traits de l'église intérieure sem esquecer o Fil... Des..., sugeriram estas analogias entre a Vida de Jesus, a regeneração do ser humano e a Pedra filosofal. [  ]
  3. A Virgem acompanha sempre Cristo, tanto no universo invisível, como no mineral, como no ser humano; as outras duas pessoas divinas também estão reunidas com Cristo, mas menos perceptíveis para nós do que o Logos salvador, vivificante e dirigente, razão pela qual Boehme fala menos do Pai e do Espírito. [  ]
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