Da Assinatura das Coisas – 10.4. As Tentações

  1. O Diabo, vendo que não conseguia vencer com estas tentações, levou o ser humano a um alto monte, e mostrando-lhe todas as riquezas deste Mundo, tudo o que é vida e se move na palavra pronunciada, todos os principados e potestades da Natureza exterior, da qual ele se intitula Senhor (embora governe apenas a fúria da morte), disse à propriedade humana: "Se tu te prostrares diante de mim, e se me adorares, eu dar-te-ei tudo isto".
  2. O Diabo queria, portanto, que a humanidade saísse do abandono e voltasse para a vontade própria. Foi o que Adão tinha feito ao buscar-se a si mesmo, com as propriedades do mundo e a avareza, como se pode ver em Caim que é o coração do Mercúrio venenoso, formando uma essência conforme ao seu desejo; o seu alimento foi formado de terra pela ignição do Pai, na sua propriedade ígnea, onde se move o veneno do Mercúrio pronunciado; é desse reino que o Diabo pensava que era príncipe; mas só o é para os ímpios. Deus impede, pela água e pela Luz do terceiro princípio, que ele chegue ao governo da palavra pronunciada; e ele é reduzido à impotência enquanto a sua Turba Magna trabalha no furor.
  3. O Diabo gabava-se de dar à humanidade de Cristo o governo das essências, que ele possui apenas naquela parte da Turba onde está o furor de Deus; ele, de fato, tentou levar o seu Mercúrio ao mais alto poder, a fim de dominar sobre o mal e sobre o bem.
  4. Ele introduziu o seu Mercúrio na impressão de onde se originam o calor e o frio; dali surgiram os dois fogos, frio e quente, do Mercúrio da criatura. É assim que o corpo sofre com o frio e o calor, ainda não manifestados quando vivia na livre vontade.
  5. O centro da fúria, que é a propriedade do Mundo tenebroso, manifestou-se em Adão; o Mercúrio do ser humano é ainda hoje uma fonte venenosa, porque a propriedade mortal é a sua raiz. Logo que a sua assinatura marciana é tocada, o seu fogo desperta cercando o corpo de tal maneira que ele treme de fúria: e é essa luta entre o corpo e o veneno que é a vida do Mercúrio corporal.
  6. Daí surgem as guerras pelo governo da cólera de Deus no Mercúrio corrompido da palavra pronunciada. O combatente é um servidor da Cólera; ele é o machado com o qual o lavrador irritado corta a sarça do seu campo; mas, tendo assim caído, ao servir a Cólera de Deus, até à imagem diabólica da palavra pronunciada, ele tem que ser regenerado, em Cristo e por meio de Cristo, com o seu Mercúrio, e tem que regressar, no Amor de Deus, no santo Mercúrio pronunciador, que é o Verbo da vida; chegado lá, que obedeça inteiramente e que abandone toda a sua vontade ao amor de Deus, fora do Mercúrio criatural, que ele não deseje nem execute nada sem a vontade do Mercúrio pronunciador, que ele seja o instrumento de Deus, a fim de que Deus se torne tudo para ele, e que só d'Ele tire a sua força, a sua vida e o seu fruto.
  7. Assim, o Mercúrio da vida humana poderá tornar-se no fruto da árvore paradisíaca: foi para este fim que o ser humano foi criado. O Diabo é o Artista da natureza furiosa à qual o ser humano mau está submetido; foi por isso que São Paulo escreveu: “O santo exala diante de Deus um bom odor, vivificante, e o odor do mau é a morte”.
  8. Tudo o que vive e se move deve contribuir para a glória de Deus, segundo o seu Amor ou segundo a sua Cólera; as criaturas emergiram do mal e do bem pela vontade do Verbo pronunciador.
  9. Os anjos e os seres humanos foram pronunciados na imagem do amor de Deus; eles não devem deleitar-se nem no fogo nem nas trevas; não devem permanecer na sua ipseidade; mas devem abandonar-se à vontade divina pronunciante, como uma das suas formas; eles não devem ter inclinação para qualquer outra coisa; eles são o espelho do Verbo, onde se contempla e se manifesta a ciência eterna do entendimento divino, a tocadora celeste da viola que faz ressoar o Mercúrio da Vida.
  10. Quando a imagem do ser humano quis agir no bem e no mal, recusando-se a realizar aquilo para que a palavra pronunciante o tinha criado, saiu do amor de Deus, no qual não havia manifestação da cólera, assim como na luz ígnea não há o tormento do fogo. A vontade do Mercúrio humano tornou-se individualizada; ela caiu no centro da geração das essências, na angústia, no veneno e na morte.
  11. Foi lá que a cólera de Deus a agarrou.
  12. Assim, amigo leitor, acabaste de ver claramente quais foram as tentações de Cristo:
    — Que a alma, e mesmo todo o ser humano, que é a imagem do Verbo pronunciador, se queria reintegrar no seu primeiro lugar, depois de ter sentido o abrasamento do amor divino.
    — Que ela queria voltar a fechar-se na sua própria vontade.
    — Que, por fim, ela queria deixar a vontade de Deus mover a sua assinatura; e o Diabo, o artista da cólera divina, prometeu a Cristo os reinos deste mundo e a liberdade das suas ações, se ele apenas saísse da misericórdia divina.
    Mas Cristo respondeu-lhe: "Vai-te, Satanás, está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele servirás”, o Diabo fugiu e os anjos aproximaram-se de Cristo e serviram-no.

O Processo Mágico1

  1. Que o mago, considerando aquilo que está prestes a empreender, não imagine poder possuir o reino terrestre pela avareza do Diabo, nem voar do alto do Templo, nem fazer das pedras o que ele gostaria; ele tem que pensar em se persuadir de que ele é apenas o servidor de Deus. Se ele quer libertar o pobre prisioneiro da cólera de Deus, e livrá-lo dos laços tenebrosos nos quais jaz na maldição da Terra, que ele compreenda como o próprio Deus o libertou; que medite ardentemente sobre a tentação de Cristo, mas se disser a si mesmo: “Tenho diante de mim uma pedra morta, bruta e impotente; vou atacá-la com violência, para tirar dela a pérola que contém”, ele é apenas um tolo inteiramente incapaz de realizar a obra.
  2. Se ele deseja buscar com sucesso, que ele imagine a vida de Cristo durante a qual Deus regenerou o prisioneiro universal da Morte na propriedade humana. Porque Deus não pegou no ser humano, encerrado na Morte, para introduzi-lo numa fornalha que o teria reduzido a cinzas, como faz o falso mago; ele primeiro deu-lhe o seu amor batizando-o, depois conduziu-o ao deserto e opôs-lhe o diabo, mas sem introduzi-lo dentro dele; deixando-o jejuar, não lhe ofereceu nenhuma carne exterior; e quando o ser humano, voltando o seu desejo para Deus, agarrou no maná, o Diabo voltou com toda a sua astúcia para tentá-lo. O que mais te posso dizer, pesquisador? Não consegues perceber nada disto?
  3. Não te posso dar a pérola dos filhos de Deus; porque é preciso que Deus se torne ser humano e o ser humano se torne Deus; é preciso que o céu e a terra se reúnam para formar uma única coisa. Se tu queres que a terra se torne no céu, dá-lhe o alimento celeste, para que o Mercúrio, encerrado na morte, receba uma vontade celeste, e a vontade do Mercúrio furioso se volte para o amor do Mercúrio celeste.
  4. Mas, como é que tu vais fazer isto? Tu vais introduzir o Mercúrio venenoso, cuja vontade está morta, como faz o falso mago? Tu queres pegar em dois demónios para formares um anjo? A pretensão seria risível; como poderias tu fazer o céu da terra com a ajuda do diabo? Deus é o criador de todas as essências; é preciso que tu comas do pão de Deus para transmutares a propriedade do teu corpo.
  5. Cristo disse: "Quem beber da água que eu lhe der, beberá da própria fonte da vida eterna". Aí se esconde a pérola da Regeneração; o grão de trigo não dará um talo se não germinar na terra, porque para que as coisas dêem frutos, elas têm que retornar à mãe que as gerou.

Notas

  1. Compreendamos que a lei da hierarquia deve ser observada: foi o ser humano que derrubou toda a natureza na sua queda; é o ser humano que deve também elevá-la para que ela o siga na sua reintegração: devemos, portanto, perceber que cabe a nós dar o exemplo aos seres inferiores e saber que a salvação universal deve ir sendo aperfeiçoada, que só se realiza gradualmente, plano após plano. De cada um de nós depende, como explica Boehme ao longo deste livro, uma certa quantidade de enxofres, de mercúrios e de sais minerais, vegetais, animais, astrais, mentais: a nossa regeneração regenera-os por radiação. Boehme parece ser difuso e prolífico: no entanto, há coisas que ele subentende: cabe ao leitor meditar no assunto, como também ele recomenda. [  ]
[ Anterior ] [ Índice do Livro ] [ Seguinte ]

Início » Textos » Assinatura das Coisas » 10.4. As Tentações