A Sabedoria em Jacob Boehme - 7. O ciclo do desejo

  1. O ciclo septiforme é o ciclo do desejo.38 Desde que ele se abre, a vontade divina manifesta-se sob a aparência do desejo. Como se exerce o desejo? Com vista à criação, à qual a manifestação divina conduzirá.
  2. Deus quer trazer à existência os corpos nos quais o seu Espírito irá irradiar. A Sabedoria anima essa vontade. No entanto, o desejo que nasce irá escondê-lo completamente. Será necessária uma verdadeira peripécia do desejo, modelo da metanoia que será a conversão da criatura, para que a Sabedoria se manifeste.
  3. Quando nasce, na alma universal, o desejo é um frenesim elevado ao nível do arquétipo. É exatamente o oposto do desejo representado pela palavra Lust quando é o nome de Sabedoria. Boehme sublinha que o desejo personificado pela Sabedoria, que é uma pura complacência, não é uma afeição da alma.39 A Sabedoria não está sujeita às paixões da alma. Ora, o primeiro desejo da natureza é o modelo de todos os apetites.
  4. É um desejo totalmente insatisfeito, porque ele só se pode alimentar de si próprio. A única substância que ele consegue agarrar é a sua própria. Quanto mais dobra, mais se contrai e mais engrossa. A vontade do Ungrund, transcendente a alma e a sensibilidade que ela representa, não foi afetada por um desejo que fosse realmente um apetite. Era uma vontade perfeitamente clara. Mas o desejo guloso é opaco. Quando ele nasce, as trevas aparecem.40 O nascimento das trevas é o do desejo na raiz da natureza eterna.
  5. A característica das trevas é a de se fecharem sobre si próprias. Elas são o oposto da perfeita abertura simbolizada pela Sabedoria e que é a liberdade própria à sua transcendência. As trevas são uma prisão. O nosso corpo grosseiro, prisão da alma, será o seu símbolo.
  6. O desejo é a sede de existir. Ora, toda a existência só se pode criar num corpo. A alma humana tem necessidade de se encarnar para existir. A primeira forma do desejo é um formidável poder de contração que engendra o arquétipo de todos os corpos. Para Boehme, o corpo é alma endurecida, é desejo congelado. Este endurecimento é à medida duma cosmogonia que se desenrola no invisível.
  7. O desejo está prisioneiro de si próprio. Mas, ao mesmo tempo, volta-se contra si mesmo. O desejo divide-se, e essa partilha está na sua própria natureza. Ao nível da criatura, toda vontade não libertada será, como o seu desejo, uma vontade dividida.
  8. Por um lado, o desejo fecha-se em si mesmo, por outro, procura com não menos violência escapar do seu próprio abraço. Este movimento contrário aparece no segundo grau do ciclo septiforme.
  9. O desejo luta para escapar da sua própria prisão. Esta sede de liberdade não é positiva? A inversão do desejo não é já a peripécia graças à qual a luz brotará? Não. Certo, essa peripécia está em preparação. Escondida sob uma noite impenetrável, a Sabedoria Eterna está a trabalhar. O que se realiza é o plano de Deus, do qual ela é o pensamento. No entanto, mesmo sob esse segundo aspecto, o desejo permanece tenebroso. Em nenhum momento a Sabedoria se compromete com as trevas, apesar destas derivarem do plano divino.
  10. No segundo grau do ciclo da natureza eterna, Boehme simboliza o desejo que busca escapar de si próprio, por um aguilhão. Obviamente, é o aguilhão da morte de que fala o apóstolo.41 Os textos de Boehme sugerem a imagem duma picareta que bate furiosamente para abrir uma brecha num muro de pedra. Esse muro será o nosso corpo e toda a nossa natureza mortal que ele representará. Este corpo terá que ser quebrado. É a morte que o destruirá. Para nascer na terra para a vida verdadeira, será necessário avançar na obra da morte. O segundo grau da natureza eterna, também representa, sob o aspecto da amargura, o veneno que destruirá o corpo perecível.
  11. Assim, dos dois primeiros graus da natureza eterna, um simboliza a vida que endurece nos corpos antes de se libertar deles, o outro simboliza o poder da morte que destrói os corpos. Esse poder da morte chama-se turba.42 Este thanatos é uma outra antítese da Sabedoria, símbolo da vida que prevalece sobre a morte: "Ó morte, onde está o teu aguilhão?"
  12. A duplicação do desejo não é uma dualidade abstrata. Não é uma simples questão de dialética. É a Discórdia Universal. É a guerra que reina em toda a natureza ainda não libertada.43 Enquanto não se tiverem reunido um e o outro, os dois desejos afrontam-se e nenhum prevalecerá. Eles arrastam-se um ao outro num turbilhão que Boehme simboliza pela roda da angústia.44 É a roda da existência que gira num movimento de perpétua loucura. Enquanto não for renovada pela graça dum segundo nascimento, a vida do ser humano é apenas este turbilhão.
  13. A roda da angústia é a terceira forma da manifestação primordial. A angústia é o temor de Deus. Segundo a Escritura, o temor de Deus é o começo da Sabedoria.45 No entanto, ela aparece aqui negativa. Com efeito, que fazemos do Deus que só nos inspira temor? Aos nossos olhos não passa dum monstro que quer a morte do pecador. Esse Deus é o diabo. Para a criatura não regenerada, que pode ser um teólogo, o temor de Deus é só o medo do inferno. A justiça de Deus é só a sua cólera que se exerce no castigo. Ora, o auxiliar dessa justiça, aquele que castiga, é o diabo. O lugar do castigo, que é a pena eterna, o absoluto de todos os sofrimentos, é o inferno. O gabinete da angústia, representado no terceiro nível do ciclo, é o arquétipo do inferno.46
  14. Nós estamos no oposto da beatitude personificada pela Sabedoria. A cólera de Deus, manifestada neste grau com o arquétipo do inferno, que será o seu lugar, está no oposto da alegria (Lust) que é sinónimo de amor.47 Igualmente, a angústia, sinónimo de extremo aperto segundo o parentesco das palavras Angst e Enge, é o contrário da liberdade que é uma abertura perfeita.48
  15. O inferno estará em cada um de nós, na raiz da alma. Nós todos nasceremos no inferno. Da mesma forma, o inferno está na raiz da alma eterna, modelo das nossas almas humanas. A manifestação divina começa no inferno.
  16. A alma é desejo. O inferno será o nosso desejo. O inferno é o fogo. O desejo também é um fogo. Mas a própria alma é apenas um fogo.49 Isto é verdade para a alma eterna, que é tanto um sopro quanto um fogo.
  17. Este fogo é, antes de tudo, um fogo frio, aquele que transforma a água em gelo. Mas é também o calor que é o sinal de toda fermentação. Ele é o fogo do feno que fermenta.50
  18. O gelo é o corpo no qual a água está presa, mas que não é o seu verdadeiro corpo. O verdadeiro corpo da água será o cristal. A Sabedoria será o mar de cristal do Apocalipse, uma água fixada num corpo mas que, no entanto, jorra. Mas esse corpo será um corpo de luz.51
  19. O gelo, símbolo dum primeiro corpo que não é o verdadeiro corpo mas que é apenas uma prisão, é também uma pedra. Para Boehme, a pedra é uma água coagulada.52 Aquilo que se produz, no primeiro grau da natureza eterna, é a solidificação de uma água original.
  20. Na pedra arde um fogo que não acende. É um fogo sufocado, aprisionado e que terá de ser libertado. O fogo que o ser humano faz brotar esfregando duas pederneiras uma contra a outra é, para Boehme, aquele que se escapa da pedra.53 Esse fogo cativo da pedra é um fogo negro, que não projeta chama.54 Ele também está na raiz da alma. Ele enfurece-se nas profundezas da alma eterna no momento em que ela se anima com um duplo movimento de contração e deslocamento.
  21. A alma comprimida ao extremo, segundo o fogo que congela, é o arquétipo da materialidade dos corpos. A alma, de acordo com a sua força explosiva que é o fogo quente, representa o espírito que recusa o corpo.55 Ora, o espírito que não se encarna, torna-se num demónio. Os anjos têm um corpo e a Sabedoria está na sua carne celeste. Os anjos caídos perderam esse corpo precioso, que é a verdadeira forma humana, e eles também não têm o nosso corpo terrestre. Os demónios não têm corpo. O dragão das trevas é um espírito sem corpo.56
  22. Quando é frio, o fogo representa o congelamento do espírito num corpo do qual terá que se libertar, como a água do gelo. Quando é ardente, mas sem por isso se acender como uma chama que ilumina, o fogo é a violência devastadora do furacão.57 O diabo identifica-se com esse fogo destruidor. No entanto, o diabo é também o fogo frio que fixa a matéria num corpo grosseiro.
  23. Nós vemos que o próprio espírito é representado negativamente nesta primeira fase da manifestação divina: ou ele endurece a matéria ou ele a faz explodir. A noção de espírito diversifica-se ao extremo em Boehme, assim como a de corpo.
  24. O fogo é o desejo da alma e o seu tormento. Como desejo, o fogo primordial nada mais é do que uma contradição. Ele é um fogo frio e um fogo quente, semelhante ao da febre. A contradição é universal enquanto a vida não for libertada. Ela só acabará quando o desejo se negar nas suas duas formas opostas.
  25. Como nos parece assim dividido, o desejo da alma eterna prefigura o que, em termos de espiritualidade, chamaremos de vontade própria da criatura. Essa vontade própria manifestar-se-á segundo dois aspectos contrários. Primeiro, é por meio dela que nos apegamos ao nosso corpo perecível. Depois, será a causa do desespero da alma que se acreditará prometida ao inferno. O desejo de escapar do maior de todos os sofrimentos ainda é um ato da vontade própria. Libertar-se dela significa aceitar a dor e assumi-la.
  26. Aquilo a que nós chamamos de peripécia do desejo é, antes de tudo, a sua extinção. O que se produz no ciclo septiforme, é uma transmutação cuja matéria é o desejo segundo as qualidades sensíveis com as quais ele se identifica. Ora, qualquer transmutação verdadeira implica a abolição total dum primeiro elemento. A transmutação do desejo realiza-se por uma ruptura absoluta entre duas formas da vontade, sendo a primeira abolida. Uma, tenebrosa, é a vontade própria, perpetuamente dilacerada. Ela é apenas apetite e sujeição. A outra, é a vontade clara, nascida da perfeita renúncia. É a vontade livre.
  27. A segunda vontade identifica-se com a Sabedoria. Ainda é chamada de desejo. Mas é o desejo de amor.58 O novo desejo não é mais dividido. Ele é um porque, eternamente realizado, alimenta-se do seu objeto e funde-se com ele. A substância desse objeto é a graça divina encarnada na Sabedoria. No entanto, para que o sujeito desejante se una assim com o seu objeto, que é Deus segundo uma natureza divina habitada pela Sabedoria, é preciso que a criatura morra para si própria.
  28. A chave de todas as transmutações é a morte, primeira fase da obra química. A Sabedoria é a vida. No entanto, ela só enche a alma se esta morrer para si própria. Certo, é apenas uma morte aparente.
  29. Isto será verdade para o ser humano, criatura terrestre. É, em primeiro lugar, ao nível da alma eterna. Uma vez morta para si própria, a alma será o santuário no qual a Sabedoria penetrará. A alma não será mais o gabinete escuro do horror. Ela será a câmara nupcial.59 A Sabedoria, que é a Esposa, bate primeiro à porta. Mas ela não entra até que o lugar esteja limpo, pois ela não se compromete com as trevas. A Sabedoria não habita na alma enquanto esta não renunciou completamente a si própria.
  30. A alma que nasce no meio do ciclo setenário é como que uma segunda alma. Ela sai da primeira, porém é uma outra alma, absolutamente desprendida do fogo negro que a precedeu. Da mesma forma, a transmutação do fogo é, antes de tudo, a morte do fogo. Aquilo que vai nascer ainda se chama fogo. Ora, é um outro fogo. É a luz cuja alma é a Sabedoria.

Notas

  1. Mysterium Magnum, III, 8 sq. [  ]
  2. Ibid., VI, 2. [  ]
  3. Ibid., III, 5. [  ]
  4. 1 Coríntios XV, 56-57; Von der Menschwerdung JEsu Christi, 2. Th., V, 2. [  ]
  5. Viertzig Fragen von der Seelen, XVIII, 12. [  ]
  6. De signatura rerum, todo capítulo II. [  ]
  7. Von sechs Theosophischen Puncten, P. 1, I, 49. [  ]
  8. Eclesiástico I, 20 e XII, 11; XXVIII, 28. [  ]
  9. Tablae Principiorum, 39. [  ]
  10. Von den drey Principien, I, 14. [  ]
  11. Vom dreyfachen Leben, VIII, 18 e 11, 15. [  ]
  12. Von der Menschwerdung JEsu Christi, 1. Th., I, 1-2. [  ]
  13. Sobre os dois fogos, ver Vom dreyfachen Leben, VIII, 22. [  ]
  14. Mysterium Magnum, XVII, 27. [  ]
  15. Von den drey Principien, XVII, 9. [  ]
  16. Von der Menschwerdung JEsu Christi, 2. Th. VIII, 1. [  ]
  17. Ibid., 2. Th., V, 2. [  ]
  18. Von sechs Theosophischen Puncten, P. 1, II, 49. [  ]
  19. Von den drey Principien, XI, 38. [  ]
  20. De signatura rerum, XIII, 2. 27-28. Ver a equivalência entre o que Boehme chama aqui der eigene Wille e por outro lado Feuer-Geist, Ver Mysterium Magnum, V, 21. [  ]
  21. Von der Gnaden-Wahl, IX. [  ]
  22. Christosophia oder Der Weg zu Christo, Von wahrer Busse, 45 sq. [  ]
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