A Sabedoria em Jacob Boehme - 6. As duas Virgens símbolos de duas vidas

  1. O ciclo da natureza é todo o movimento da alma eterna de acordo com uma dinâmica que empurra para a realização. Esse devir divide-se em duas fases que constituem como que duas almas, a primeira escura, a segunda luminosa. Desta última, Boehme dirá que ela é a alma verdadeira.31 É uma alma superior, identificada com o Espírito que está nela. Neste nível, a palavra Gemüth é o equivalente de mens, de noûs. Dito de outra forma, significa a alma na sua raiz, ainda encerrada nas trevas.32 Essa dualidade da alma é fundamental na teosofia de Boehme. Ela define-se paralelamente à dualidade da carne, celeste ou mortal.
  2. A alma humana apresentar-se-á sob esses dois aspectos que se sucedem. Primeiro ela será tenebrosa. Boehme não é um filósofo moderno para quem a alma seria pura à partida, enquanto que o corpo seria imperfeito. Para o teósofo, todos nós nascemos com uma alma da qual a carne mortal é a imagem. É uma alma cheia de trevas. Se há um princípio bom nela, ele está escondido como o dia por baixo da noite.
  3. Depois, quando nascemos de novo para nos tornarmos filhos de Deus, a nossa alma enche-se de luz. A sua substância forma um corpo glorioso. O segundo nascimento, que nos faz passar das trevas à luz, é a transmutação da alma. É a mesma transmutação que ocorre na alma eterna, modelo da alma humana. O ciclo da natureza eterna repete-se no ser humano.
  4. Nos dois planos, o da natureza eterna e o da criatura, é a Sabedoria que está em ação. A Sabedoria preside a todos os nascimentos espirituais e, em primeiro lugar, ao advento de Deus na alma eterna.
  5. Este advento manifesta-a. Antes, ela estava escondida, enquanto trabalhava, sob as aparências da morte, para que nascesse a verdadeira vida, que é a vida imperecível. A Sabedoria personifica a vida eterna.
  6. O que o teósofo descreve, no ciclo primordial da natureza, é o surgimento da vida eterna na luz. As trevas, que precede a luz, são sinónimo de morte.
  7. Paradoxalmente, a manifestação divina começa com a morte de Deus. Obviamente, é a morte de Cristo que se projeta para trás neste ciclo primordial. É a morte exemplar, aquela que os fiéis deverão sofrer vitoriosamente imitando Cristo. Essa morte passa do plano histórico ao de uma eternidade que está no limite dum tempo ideal, arquétipo do nosso tempo.
  8. Mas a ressurreição de Cristo, símbolo do nosso segundo nascimento, ainda está além desse tempo ideal. É nesse além que a Sabedoria aparece.
  9. Nos primeiros três graus do ciclo da natureza eterna, a verdadeira vida está a nascer. Ela ainda não brota. Nesse tempo primordial que é o modelo do nosso devir, a vida está aprisionada na morte.
  10. Toda vida é antes de tudo uma morte. Certo, isto significa que não há verdadeira morte. Toda morte não esconde uma vida a nascer? No entanto, toda a vida apenas nasce quando se liberta. A verdadeira vida só brota escapando duma prisão que é a morte.33
  11. As trevas são a aparência da morte. Ora, a natureza delas quer que elas sempre se encerrem em si mesmas . A vida, é aquilo que se abre. A claridade é sinónimo de perfeita abertura, que é a liberdade. A Sabedoria personifica a liberdade. É a claridade da verdadeira vida.34
  12. A Sabedoria representa a claridade do Ungrund. A esta claridade opõe-se a noite do abismo (Abgrund).
  13. Toda a vida é uma planta cujas raízes se afundam em profundezas tenebrosas. Os três primeiros graus do ciclo da natureza referem-se a essas profundezas. Eles simbolizam a vida não libertada. Eles prefiguram a vida da criatura ainda não libertada das trevas. É a vida da qual dizemos não ser mais que uma morte. Essa primeira fase do ciclo primordial representa o abismo que existe em cada um de nós. Toda alma é, antes de tudo, um abismo tenebroso.
  14. Quanto à vida eterna, simbolizada na segunda fase, é aquela que nos é dada quando nascemos de novo. O segundo nascimento é a transmutação da vida.35 Essa transmutação que se realiza no opus primordial da natureza eterna, é o modelo de todas as obras divinas.
  15. Nas duas etapas da sua manifestação, a vida aparece segundo qualidades sensíveis que nascem ao mesmo tempo que os sentidos e que preexistem às coisas: a aspereza, a amargura, o quente, o frio, etc. Essas qualidades constituem essências, segundo o significado que esta palavra tem para Boehme. É delas que fluirá a realidade das coisas criadas. Elas correspondem aos vários graus da natureza eterna.
  16. As qualidades não são nomes abstratos. Elas são os úteros das coisas. Mas um útero não é apenas um receptáculo. Não é simplesmente o meio no qual a vida prospera. É, principalmente, o surgimento dessa vida. É por isso que as qualidades são fontes.
  17. Essas qualidades que engendram as coisas são espíritos. Para uma mentalidade moderna, é paradoxal chamar a uma qualidade sensível de espírito. Ora, as qualidades são espíritos porque elas são imateriais em relação às coisas vindouras. No entanto, estas são, de fato, qualidades sensíveis e que aparecem ao mesmo tempo que os sentidos. Elas serão à imagem da sensibilidade: negativas no nível dos sentidos grosseiros, positivas quando se relacionam com os sentidos espirituais.
  18. Cada qualidade é uma forma específica de vida. É por isso que Boehme diz indiferentemente qualidade ou forma.
  19. A forma é o aspecto sob o qual a vida aparece segundo esta ou aquela qualidade sensível que predomina. É, pode-se dizer, essa qualidade tornada visível. Nós estamos num universo onde tudo se expressa em termos de percepção e principalmente de visão. Toda forma é, portanto, o espelho através do qual essa qualidade se dá a conhecer como se ela fosse uma coisa, ao passo que ela é um espírito. Esse espelho é a imagem que ela produz para ser conhecida. Todo ser produz a sua imagem porque tende a manifestar-se. Toda existência, para o melhor como para o pior, realiza-se na imagem que ela oferece de si mesma. Todas as formas de vida, boas ou más, aspiram a revelar-se segundo uma imagem que é a sua quintessência.
  20. A produção dessa imagem é a imaginação. Na esfera da alma eterna, Deus imagina os mundos segundo qualidades sensíveis que se multiplicarão e que serão outras tantas imagens ou espelhos. A Sabedoria é a imaginação divina.
  21. Haverá também uma imaginação perversa, que será exercida pelas criaturas desvinculadas de Deus. O mal também aspira a revelar-se.36 Todas as forças da vida trabalham para se manifestarem, cada uma produz a sua imagem de acordo com a faculdade imaginativa que será exercida universalmente na criação.
  22. Cada grau do ciclo setenário representa uma qualidade ou forma, cada uma sendo chamada a diversificar-se sem fim. As sete qualidades ou formas são, portanto, outras tantas imagens ou espelhos. Em cada uma das duas fases da manifestação septiforme, todos os espelhos aparecem fundidos num só.
  23. Um desses dois espelhos universais será a Sabedoria. Será um espelho radiante. O outro, o primeiro, é identificado com uma Virgem tenebrosa a quem Boehme chama die Jungfrau der Qual.37
  24. A palavra Qual é um substantivo que se relaciona com o verbo quellen, jorrar. Esta Virgem obscura simboliza a vida que está a nascer nas trevas, mas que é prisioneira delas. As trevas são um abismo, e esta figura que é o oposto da Sabedoria, é o espelho do abismo. A Sabedoria representará a claridade do Ungrund manifestada num corpo de luz. A Virgem das trevas representa o poder do abismo (Abgrund). Ela é a Mãe do diabo.
  25. As trevas são visíveis? Para Boehme, há também uma visibilidade das trevas simbolizada pela Virgem sinistra. Na realidade, é a criatura que a vê. Boehme dirá que este é o fundamento da fé. Isto significa que não há verdadeira fé sem a visão do abismo. É assim que desperta o desejo da luz. No entanto, saibamos bem que, para Boehme, não há nenhuma complacência para com o abismo.

Notas

  1. Clavis, 59. [  ]
  2. Theosophische Send-Briefe, XLVII, 36; Mysterium Magnum, III, 12-13. [  ]
  3. Von der Menschwerdung JEsu Christi, 2. Th., IV, 7-9. [  ]
  4. Ibid., 2. Th., III, 4. [  ]
  5. Von der Gnaden-Wahl, IX, 95-96. [  ]
  6. Ibid., VIII, 47. [  ]
  7. Viertzig Fragen von der Seelen, I, 49-55. [  ]
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