A Sabedoria em Jacob Boehme - 5. A Sabedoria e a natureza eterna

  1. Evocamos um Deus que traz em si todas as obras futuras, mas que não as conhece verdadeiramente. Certo, ele percebe-as de uma maneira ou de outra, visto que elas são a causa da sua beatitude. No entanto, essa percepção está simplesmente implícita nos propósitos de Boehme, que permanecem muito abstratos quando o teósofo fala dessas origens muito distantes. Tudo o que ousamos dizer é que Deus pressente as suas obras. Ele não as conhece.
  2. Para Deus, conhecer as suas obras, será conhecer-se a si próprio. Deus conhecer-se-á na sua Sabedoria que representa a plenitude das suas obras. O Deus, cujo nascimento Boehme evoca antes da natureza, é um Deus que ainda não se conhece.
  3. Deus conhecer-se-á na sua Sabedoria, mas contra o fundo escuro que apresentará a natureza. A Sabedoria só se manifestará ao destacar-se contra esse fundo tenebroso. Não é na claridade do Ungrund que Deus contempla a sua própria majestade, mas na luz. Ora, sem sombra, a luz não seria percebida. Ela não existiria. A Sabedoria será a alma da luz que brotará no seio da natureza. Não há verdadeira revelação fora da luz.
  4. É na natureza que as obras de Deus ou, como diz Boehme, as suas maravilhas serão realizadas. Ora, Deus só se revela através das suas obras. É uma verdade absoluta para a criatura, mas não menos para Deus revelando-se a si próprio. Além disso, quando a criatura contempla o esplendor divino, é Deus quem se contempla nela. Nós conheceremos assim como nós somos conhecidos, diz o apóstolo.27 O Deus de Boehme poderia dizer: Eu conhecerei assim como eu sou conhecido.
  5. Deus só se manifesta nas suas obras. É por isso que a Sabedoria é ao mesmo tempo a imagem de Deus e o espelho das suas maravilhas. E como o ser humano, segundo a sua perfeição última, representará a plenitude das obras divinas encarnadas na carne celeste de Cristo, ele será o seu espelho perfeito e, portanto, a imagem de Deus. É por isso que é vão querer conhecer Deus a não ser no ser humano. O próprio Deus se conhecerá nessa imagem. Para Deus, é a sua própria imagem ao mesmo tempo que a do ser humano. Certo, não é o Absoluto que se conhece assim. Tomado em si mesmo, o Ungrund não se conhece mais do que aquilo que ele é conhecido.
  6. É, portanto, nesse espelho que Deus se revelará a si próprio. Todas as energias da natureza tenderão a produzir a imagem que será a forma humana tornada visível. Essa imagem identifica-se com a Sabedoria, que é tanto a sua causa quanto a sua realidade última. No plano da chamada natureza eterna, que não é a nossa natureza, são os anjos que vão representar essa forma humana, imagem de Deus. Essa imagem era virtual quando nós a entrevimos. Quando os anjos forem criados, ela ter-se-á tornado real.
  7. Saibamos bem que a imagem não é uma simples reprodução. A imagem é a visibilidade das coisas. A imagem ou o espelho é a face das coisas que nós contemplamos. É assim que a Sabedoria, imagem de Deus, é a Face de Deus. A imagem não dá apenas um simples reflexo das coisas. É a realidade profunda delas que está nela.
  8. É, portanto, graças à natureza que essa imagem será produzida e que Deus se conhecerá nela. Mas o que é a natureza? É a alma por excelência. Ao implicar-se no ciclo da natureza, Deus vai revestir-se de uma alma, assim como a alma humana, para vir existir neste mundo, dá-se uma roupagem que é o corpo. Para nascer, Deus tem que ter uma alma.
  9. É a alma eterna de Deus que a palavra Gemüth designa. Ela é a sensibilidade divina. Mesmo ao nível mais alto, a sensibilidade e a inteligência não podem ser separadas no espírito de Boehme. Toda a inteligência é exercida através dos sentidos. Os pensamentos de Deus desdobrar-se-ão através dos sentidos que nascerão na natureza eterna. Sem eles, sem órgãos, como é que Deus contemplaria o seu próprio esplendor? A alma eterna será o sensorium de Deus.
  10. Certo, essa sensibilidade, com a qual Deus se vai dotar, só pode ser concebida por analogia com os sentidos espirituais do ser humano nascido para a vida verdadeira. Ela não é à imagem dos sentidos grosseiros. A analogia é total entre o ser humano que acede à contemplação e Deus que se conhece. Aquilo que nasce na natureza primordial é o Ser Humano eterno que será o modelo da criatura nascida a partir do alto. Ele representa a plenitude da manifestação divina. Ele encarnar-se-á na carne celeste de Cristo, o Ser Humano perfeito.
  11. Graças à sensibilidade com que se reveste, Deus torna-se capaz de perceber. Mas, ao mesmo tempo, Deus será percebido, apesar de em si mesmo, o Espírito ser inatingível. Deus será percebido por ele próprio assim como pela criatura. Para Deus, perceber e ser percebido são uma mesma coisa.
  12. Quando a Divindade pura se funde no coração de Deus, que é o seu Filho, o Espírito nasce.28 No entanto, o Espírito de Deus não se poderia manifestar na sua nudez. A sua claridade tem que aparecer sob uma aparência luminosa. Essa aparência será a obra da Sabedoria, que preside a todas as teofanias. Mas ela não se realizará sem a natureza.
  13. Uma claridade não luminosa, não é percebida. O olho veria a brancura, se ela reinasse sozinha? É preciso um toque de sombra para torná-la visível. A sombra virá da natureza. A Sabedoria não se identificará com a natureza. No entanto, ela personifica o projeto divino que lhe deu origem. Ela é, por assim dizer, a alma da alma eterna. É ela que torna Deus visível graças à natureza. A Sabedoria é a visibilidade de Deus.
  14. A alma eterna é o modelo de todas as almas humanas. Isto explica porque é que ela é apresentada em formação. Foi dito, não sem razão, que o Deus de Boehme era um Deus em formação, in fieri.29 Mas é preciso saber em que nível se está a dizer isto. Para comentar a teosofia de Boehme, é preciso que nos lembremos o tempo todo em que nível nos situamos.
  15. Se a considerarmos como o Absoluto, a Divindade de Boehme é imutável. Na Eternidade perfeita, não pode haver movimento, esta palavra significa antes de tudo a formação fora do Ungrund. Em si, o Ungrund permanece uma eternidade imóvel.30 Ele é o repouso que não conhece o movimento.
  16. A Sabedoria também será um símbolo do repouso. No entanto, esse repouso manifestar-se-á de acordo com um movimento perfeitamente dominado. A Sabedoria será a alma desse movimento. Ela será a sua causa ideal, permanecendo, ela mesma, o repouso perfeito.

Notas

  1. 1 Coríntios XIII, 12. [  ]
  2. Mysterium Magnum, VII, 6-8. [  ]
  3. Alexandre Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Paris, Vrin, 1971, p. 256. [  ]
  4. De signatura rerum, II, 7. [  ]
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