A Sabedoria em Jacob Boehme - 2. A Sabedoria antes da natureza eterna

  1. Para se revelar, o Deus de Boehme engendra-se no ciclo septiforme da natureza eterna. A Sabedoria preside a esse nascimento de Deus. Podemos falar dela antes disso? Boehme repete, Deus só se revela na natureza eterna. Se nós não sabemos nada de Deus antes dessa natureza, o que dizer da Sabedoria?
  2. Antes de entrar no ciclo da natureza, a Divindade de Boehme ainda não é Deus. Isto é, pelo menos, o que emerge em primeiro lugar da sua proposta. No entanto, a sua teoria vai mudar.
  3. Esse Deus que ainda não é Deus é uma Divindade que escapa a todo conhecimento e que se assemelha ao En-Sof, o Infinito dos cabalistas. Boehme chama-lhe de Ungrund. Esta palavra sugere um Infinito sem fundamento (Grund), uma Eternidade sem origem. Querer apreender essa Divindade é entregar-se às trevas. Se nós pretendemos mergulhar no Infinito primordial, ele transforma-se num abismo tenebroso que nos engole. Foi o que aconteceu com Lúcifer que se queria igualar à imensidão sem limites. Lúcifer queria ser o Absoluto.
  4. Para a criatura, um Deus desconhecido é apenas trevas. É precisamente esse Deus oculto que simboliza o início do ciclo da natureza eterna. Boehme identifica-o com o Pai, enquanto que a luz será apropriada ao Filho.
  5. Na Aurora, que é a sua primeira obra, Boehme só fala de Deus dentro dos limites desse ciclo. Ele evoca o aspecto sinistro do Pai que, sem o Filho, não passa de um vale escuro.1 Depois, ele mostra o Pai iluminado pelo Filho. Só então, Deus é verdadeiramente Deus. De outra forma, ele não passa duma Divindade monstruosa, da qual, o diabo será a imagem.
  6. Posteriormente, a visão de Boehme fica mais matizada. Boehme vai meditar nesse Absoluto a que ele chamará de Ungrund. Ele considera-o fora da natureza, mas não mais como sendo um abismo tenebroso. Ele não será mais o Deus oculto que manifesta negativamente o ciclo septiforme no seu início. Ele será anterior a essa entidade tenebrosa. Ele continuará a ser o Deus incognoscível. No entanto, à custa duma contradição, Boehme falará dele. Ele o evocará em termos de eternidade e claridade. Quando a Divindade for o Deus oculto, será essa claridade primordial que será obscurecida.
  7. Eis, portanto, o Ungrund, essa Eternidade que precede o desdobramento da natureza eterna. A Sabedoria está presente nesse nível?
  8. A Divindade pura, como lhe chama Boehme, é um símbolo do silêncio perfeito. A Sabedoria concebe-se numa Eternidade sem voz?2 O Verbo, que será a voz de Deus, antes de se tornar na Palavra proferida, ainda não existe nessa solidão absoluta. Ora, o que seria da Sabedoria sem o Verbo? A Sabedoria manifestar-se-á na voz de Deus.
  9. A Divindade pura é claridade infinita. No entanto, essa claridade não é luz. Na brancura desse Infinito não há nem luz nem trevas.3 Ora, a Sabedoria será a alma da luz.4
  10. A Divindade pura é repouso absoluto. No entanto, esse repouso não é o verdadeiro sabá, símbolo de vida plena. A vida não está no Infinito primordial.5 A vida ainda não nasceu. Ora, a Sabedoria será, por excelência, a vida divina, a vida eterna. A criatura não consegue imaginar a vida nessa Eternidade primeira, de tal forma ela lhe escapa.
  11. No entanto, dois níveis podem ser discernidos na visão de Boehme do Ungrund. Primeiro, ele é Divindade pura que repousa perfeitamente nela própria. Essa Divindade é uma unidade simples, ela é absolutamente uma. Não se consegue distinguir nela nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito. Mas em seguida, essa Divindade move-se. Ela põe-se em movimento para dar, a si mesma, um centro ao qual Boehme chama de seu coração ou de seu Filho. Ela vai irradiar a partir desse centro para se tornar numa verdadeira plenitude. O Infinito, como tal, não tem centro. O Infinito primordial não é uma plenitude. Ele só é puro vazio. Segundo Boehme, toda vida visa um centro que será o coração da sua existência. É lá que ela se realizará segundo a sua finalidade que é a sua maior perfeição possível.6 Esta verdade aplica-se ao próprio Deus.
  12. A Divindade fixa-se num centro e desdobra-se a partir do coração ao qual Boehme chama de Filho. Ela torna-se num Pai que engendra o Filho e que se desdobra nesse Filho. É assim que a Divindade sem nome se torna Deus de acordo com esse nome. Enquanto ele ainda é o Absoluto, o Ungrund não é Deus.7 É nesse primeiro começo onde Deus nasce, que a sua Sabedoria aparece. Se assim se pode dizer, a Sabedoria é contemporânea de Deus.
  13. A palavra Ungrund significa literalmente a ausência de qualquer fundamento (Grund). Quando Deus nasce nas alturas sublimes que estamos a evocar, a Divindade funda-se, estabelece-se em si própria. O fundamento, a partir do qual o seu próprio espaço será constituído, é a sua sede, o seu trono. Mas esse fundamento é também um começo. É o primeiro começo que, em relação com o que se seguirá, assume um valor absoluto, embora não estejamos mais no Absoluto no sentido mais forte do termo. Esse primeiro começo, Boehme inicialmente localizou-o no início do ciclo da natureza eterna, ao qual ele chamará sempre de começo eterno. Depois, ele reporta-o ao nível da verdadeira transcendência. A Eternidade primeira não tinha começo, ela é o Infinito que não parte de nada. Ora, deve-se imaginar, depois da Aurora, numa espécie de Eternidade segunda que é a de uma Divindade ainda não engajada no ciclo da chamada natureza eterna. Essa nova Eternidade é concebida segundo um começo.
  14. A Sabedoria manifesta-se nessa primeira origem que se situa no momento ideal em que Deus nasce no Filho.8 Ela é, por excelência, a alegria (Lust) que representa esse nascimento. Boehme empresta à Eternidade imóvel um deleite que é traduzido pela palavra Wonne,9 mas a beatitude simbolizada pela Sabedoria é doutra natureza. Deus nasce, e a Sabedoria é a felicidade de Deus. Ela é a alegria duma Divindade que toma posse de si própria.
  15. Qual é a causa dessa felicidade? É o próprio Deus, visto que não existe nada para além de Deus. A Divindade pura chamada Ungrund é, ela própria, o Nada. A sua brancura é a do Nada. Para que a manifestação divina seja possível, é preciso que apareça qualquer coisa na qual Deus brilhe. Deus só pode manifestar-se em qualquer coisa. A natureza será o receptáculo no qual Deus se manifestará.10 No entanto, à custa duma aparente contradição, Boehme concebe uma manifestação primordial ao nível da pura transcendência, certo, no seio duma Eternidade que já está no segundo grau, mas que ele evoca segundo uma origem anterior à da natureza. Nessa altura, Deus é tanto o Nada quanto o seu próprio qualquer coisa.11 Deus é a Divindade que se estabeleceu em si própria.
  16. Em todas as coisas haverá sombra. No nível em que nos colocamos, essa qualquer coisa que Deus representa para si próprio não pode ser tenebrosa. Nós temos que imaginá-la como uma claridade perfeita, igual à do Nada ou da indeterminação pura. A Sabedoria simboliza essa claridade primeira. Mais tarde, ela será a alma da luz. Ora, a luz ainda não existe, assim como as trevas. É no seio da natureza eterna que a luz brotará.
  17. A ideia de indeterminação total, que caracteriza o Deus nascido no nível do Ungrund, é expressa pela palavra Freyheit. Este termo significa liberdade. Mas para Boehme, e de acordo com uma acepção que é normal em alemão, frey significa liberto de. Boehme dirá frey von der Finsterniss: liberto das trevas.12 No nível em que estamos, não se trataria ainda das trevas. Só haverá trevas quando o qualquer coisa nascer, que não será Deus. Não obstante, o discurso humano obriga o teósofo a falar da claridade divina como duma ausência de trevas. Diremos que Deus se libertou das trevas apesar delas ainda não existirem. A palavra Freyheit, portanto, significa essa ausência de trevas. Ora, juntamente com Lust (alegria), ela é um dos nomes da Sabedoria.12
  18. Sofia personifica a pureza primeira. Essa pureza não é mais o vazio do Nada. Quando a corporalidade ainda não existe, ela prefigura a pureza dum corpo sublime que será o de Cristo. No entanto, é uma pureza que é, ela própria, o corpo de Deus. Neste nível, a Sabedoria oferece o paradoxo dum corpo sem matéria. A virgindade de Sofia está nessa pureza primeira que permanece um absoluto, apesar de ela não ser mais apenas o Nada. A Virgem perfeita representa a pureza de um Deus que é ao mesmo tempo o Nada e o Tudo. Neste nível, a plenitude tem a pureza do Nada.
  19. A Sabedoria é o corpo de Deus.14 Ela será o esplendor com o qual Deus se revestirá como dum manto para ser conhecido. Ela será a Glória na qual Deus se manifestará.
  20. No entanto, a Sabedoria não é apenas o corpo sublime graças ao qual Deus aparece. Ela é também a vontade que comanda a manifestação divina desde a sua origem até ao seu termo. O corpo e a vontade são apenas um.
  21. A pureza da Sabedoria não está apenas no seu corpo imaterial, mas está também nessa vontade. Ela está na indeterminação absoluta que é a sua liberdade. Qualquer motivo que a constrangesse, obscurecê-la-ia. Ora, ela não tem nenhum. A liberdade representada pela Sabedoria está na perfeita claridade duma vontade que não obedece a nada. A alegria personificada pela Sabedoria eterna está nessa vontade que não é nada mais do que deleite.
  22. A perfeita gratuidade da vontade divina neste plano, que é ainda o da transcendência pura, traduz-se na noção de jogo, que está ligada à Sabedoria em conformidade com a Escritura. Toda manifestação divina será regida pela ideia de jogo.15 Se Deus se revela, não é por necessidade. Ao manifestar-se, Deus joga consigo próprio. A alegria, simbolizada pela Sabedoria, é a de um Deus que joga. O nome liberdade, que lhe é dado, significa igualmente a absoluta gratuidade do divertimento divino.

Notas

  1. Aurora, III, 22. Para as obras de Boehme, veja a edição de Will-Erich Peuckert (fac-similé da edição de 1730), Stuttgart, Fromann, 1956. [  ]
  2. Vom dreyfachen Leben, III, 21. [  ]
  3. Mysterium Magnum, III, 3. [  ]
  4. Von der Gnaden-Wahl, III, 21-22. [  ]
  5. Von der Menschwerdung JEsu Christi, 2. TH., I, 9. [  ]
  6. Vom dreyfachen Leben, VIII, 17. [  ]
  7. Von der Menschwerdung JEsu Christi, I, 9. [  ]
  8. Von der Gnaden-Wahl, IV, 41. [  ]
  9. Vom dreyfachen Leben, II, 78. [  ]
  10. Theosophische Send-Briefe, XLVII, 34. [  ]
  11. Von der Gnaden-Wahl, IV, 7. [  ]
  12. Von der Menschwerdung JEsu Christi, 2. Th., III, 3. [  ]
  13. Ibid., 2. Th., III, 4. [  ]
  14. Vom Irrthum der Secten E. Stiefels und Ez. Meths, 253. [  ]
  15. Mysterium Magnum, III, 21. [  ]
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