O Ser Humano Virginal - 4. A Regeneração

  1. Na linguagem de Boehme, o nosso mundo é o terceiro princípio. Recordemos que o que caracteriza este terceiro reino é a dualidade entre os outros dois, dos quais este participa ao mesmo tempo. Nós destacámos esta dualidade e parece que ela não pode ser resolvida, pelo menos de forma definitiva, senão por uma rotura total de plano: deste mundo é preciso passarmos para um outro reino. Para conciliarmos perfeitamente os contrários, é necessário deixarmos o terceiro princípio para subirmos à condição de criaturas nascidas de acordo com o segundo princípio. Este nascimento foi para Adão o primeiro, para a sua posteridade será o segundo. O ser humano terrestre tornar-se-á no ser humano celeste que era Adão antes da queda, esta é a nossa vocação.
  2. A primeira totalidade, que é sinónimo de unidade perfeita, só será restabelecida num outro reino. No entanto, a passagem de um reino para o outro pode ocorrer para o ser humano enquanto ele ainda está vivo aqui em baixo, é mesmo sob este aspeto que é considerado por Boehme. A característica da mística cristã é antecipar a beatitude desde o presente da nossa existência terrestre, presente este que conduz à eternidade. Esta antecipação está constantemente implícita nos pensamentos de Boehme. A chave do seu sistema é a noção do segundo nascimento. Ao nascer uma segunda vez, no alto e segundo o espírito, tornamos-nos num ser humano celeste, mesmo enquanto o nosso corpo de carne vil ainda não esteja dissolvido. Assim, os dois mundos coexistem numa única pessoa, os dois corpos que os representam estão um dentro do outro.58 No entanto, a verdadeira totalidade está na natureza celeste, está no corpo de luz que o ser humano novo recuperou, semelhante ao de Adão antes do seu sono culpado.
  3. No corpo celeste, os sexos são transcendidos. O ser humano novo não é mais homem ou mulher como o ser humano velho. Ultrapassar a distinção entre os sexos, não é aboli-los? Certamente não é reuni-los como se fossem somados. Os anjos não têm órgãos genitais59 e o corpo do ser humano interior é de fato o de uma criatura celeste, de acordo com o segundo princípio. Segundo o seu ser profundo, o ser humano nascido duas vezes é já um desses ressuscitados de quem Cristo diz isto: "Porque na ressurreição os homens não têm mulheres, nem as mulheres têm maridos; mas são como os anjos no céu."60 Para o ser humano regenerado, o presente da sua permanência aqui em baixo já é a consumação do tempo.
  4. O segundo nascimento dá-nos acesso ao mundo celeste, mesmo que de acordo com o nosso corpo de carne vil ainda sejamos uma criatura terrestre. Nós pertencemos assim a duas naturezas, uma celeste, outra que é a do spiritus mundi. Essas duas naturezas estão como que encaixadas uma dentro da outra, porém há uma separação absoluta entre elas que é de ordem ontológica. E, se a natureza terrestre permanece, é como se ela já estivesse separada. O segundo nascimento faz-nos antecipar a glória celeste, mas também a nossa morte terrestre. Para nascer de novo, temos que morrer. Da mesma forma, para que apareça um novo mundo no fim dos tempos, é preciso que o nosso céu e a nossa terra tenham sido destruídos.
  5. O terceiro princípio será abolido. No entanto, terá tido a sua utilidade. É mesmo graças a ele que o ser humano pode ser restaurado ao seu esplendor original, enquanto que o anjo caído permanece para sempre cativo das trevas. É graças à sua condição terrestre que o ser humano se pode restabelecer. Certo, é preciso que ele a abandone, mas ela terá sido útil para ele.
  6. A dualidade que rege o terceiro princípio é salvadora. Por causa dela, o ser humano é imperfeito. Aparece sempre como uma metade de ser, masculino ou feminino. Ele está dividido entre o bem e o mal. Ele é incapaz de acabar com essa divisão segundo a sua condição de ser humano terrestre. Mas, em contrapartida, se for tentado pelo mal, não fica prisioneiro das trevas, a menos que se tenha votado a elas de modo a não ser mais do que a imagem do demónio. Primeiro, o anjo contempla apenas a luz, depois, quando conhece as trevas, elas fecham-se sobre ele e ele nunca mais escapará delas. Para o ser humano, pelo contrário, a experiência das trevas que lhe é oferecida no seio do terceiro princípio é benéfica, certo, na condição de que ele não se compraza nelas, porque ele também pode ser precipitado lá eternamente. Essa experiência não só pode ser útil, mas também é necessária. Já dissemos que sem ela não há verdadeira gnose.
  7. A dualidade da nossa existência terrestre parece ser uma maldição. Ora, é compreendendo-a que o ser humano se pode erguer. Sem a revelação da dualidade, não saberíamos o que é o Um e não o desejaríamos. É por isso que a visão da dualidade universal, que nos é oferecida pelo nosso mundo dilacerado, faz parte da gnose. Desde o início da sua primeira obra, A Aurora Nascente, Boehme proclama que em todas as coisas há dois princípios opostos61 e é, partindo dessa verdade, que ele vai explicar toda a manifestação divina. Boehme só concebe o Um com relação a uma ruptura que se deu na sua imagem, e a uma totalidade posteriormente reencontrada.
  8. Assim, o nosso mundo tem um valor de iniciação. É dele que devemos partir se quisermos ascender ao verdadeiro conhecimento. Quando o autor da Aurora diz que o livro por excelência é a natureza,62 é antes de tudo do nosso mundo que ele fala.
  9. A nossa natureza é o espelho daquela outra natureza a que Boehme chama de eterna. Certo, esse espelho é transitório. Para alcançar o nível das realidades superiores, terá que ser quebrado, tal como o nosso céu e a nossa terra serão destruídos no fim dos tempos. No entanto, sem esse reflexo, a nossa demanda seria vã, nós nos perderíamos numa abstração que seria pura inanidade.
  10. A nossa natureza mostra-nos poderes que combatem entre si. Ora, esse espetáculo dá-nos a ideia dum outro mundo onde essas mesmas forças estariam unidas de forma indissolúvel. A perfeição da natureza eterna está na união entre virtudes dinâmicas que também se manifestam no nosso mundo terrestre, mas em confronto umas com as outras. A visão do seu combate desperta em nós o desejo de um outro mundo no qual eles estariam em perfeita harmonia. Essa outra natureza é, para Boehme, o lugar da revelação suprema. Ainda é uma natureza, mas é transcendente em relação à nossa.
  11. O nosso mundo revela-nos os poderes que, separados aqui em baixo e opondo-se, fundem-se um no outro ao nível da natureza eterna. Apesar de tudo, a nossa natureza também é o lugar onde eles concordam, onde eles estão, como diz Boehme, em temperamento. No entanto, este acordo é imperfeito, nunca é duradouro.
  12. O símbolo da consonância é a luz. A do nosso sol não é a verdadeira luz, no entanto ela é aparentada. A luz do sol procede da luz verdadeira, a luz do sol é uma forma diminuída da luz verdadeira. A luz do sol esconde a verdadeira luz, no entanto a luz verdadeira está na luz do sol. É da luz verdadeira que a luz do sol deriva as suas virtudes.
  13. A nossa luz é imperfeita, porque ela alterna sempre com a noite. Ela não é eterna, porque o nosso sol desaparecerá no fim dos tempos. O que está condenado à morte não é perfeito. No entanto, durante o tempo do seu esplendor, ela é o símbolo do reencontro entre os contrários e da totalidade.
  14. A luz é a claridade do fogo. É uma claridade à qual o fogo deu brilho. A luz é o fogo que era negro e que se tornou perfeitamente transparente. A pureza da chama é a brancura da luz. O seu brilho é o vermelho do fogo. Na luz, o branco e o vermelho unem-se para formar uma totalidade.
  15. A luz é o símbolo da união dos contrários. Ela é o fogo masculino unido com a suavidade da água. Ela é essa suavidade feminina, ela é também o brilho que o fogo dá à água.
  16. O ouro da luz é a cor amarela na qual o branco e o vermelho se casam. Boehme ilustra essa união pelo simbolismo químico do leão, que é Mercúrio e que é Cristo.63 O leão é branco e é vermelho. A brancura é a cor de Vénus, que se refere à Virgem celeste. A púrpura é a cor do fogo.
  17. O leão vermelho, antes de ser unido ao leão branco, é a cólera de Marte. A sua força violenta é desarmada pela suavidade de Vénus. O leão vermelho morre, o leão branco aparece. É o fogo escuro que morre. No entanto, ele renasce florescendo na claridade. O nascimento da luz é a metamorfose do fogo.
  18. A púrpura tingiu a brancura, deu-lhe o brilho da luz. Para Boehme, a luz é a claridade mais o brilho que ela recebe do fogo e que a torna visível. No entanto, o vermelho, que é o fogo da alma, porque toda a ciência da natureza é a física ou a química da alma, resplandece na claridade. Assim, o leão branco e o leão vermelho são apenas um. A cor amarela é a aparência desta unidade.
  19. Sob o aspecto do branco e do vermelho, são Vénus e Marte que estão unidos. Vénus é a substância (Wesen). Marte é o espírito, isto é, a alma que animará essa substância e que nela irradiará. A alma é masculina, é o leão símbolo da força. A alma é vermelha, da cor do fogo e do sangue. Ela é primeiro o fogo da cólera, depois ela transforma-se no fogo do amor.
  20. Marte é apaziguado por Vénus,64 cujo corpo ele criou com o seu próprio desejo.65 A cólera de Marte cessa e Marte produz a tintura benéfica do sol.66 Por sua vez, Marte é tingido pelo sol. E Vénus, ela própria, recebe essa tintura que é o fogo de Marte sublimado na luz do sol.67
  21. O fogo de Marte era o símbolo da violência que é a expressão da cólera de Deus. Sublimado na luz do sol, o fogo da cólera tornou-se num fogo de amor. Primeiro, era a suavidade de Vénus que era a manifestação do amor. Agora, as virtudes femininas passaram para o fogo viril. E é do sol que a própria Vénus recebe os benefícios.
  22. As núpcias de Marte e de Vénus, dentro da luz do sol, são a resolução da antinomia entre o amor de Deus e a sua cólera. O amor e a cólera tornam-se um, o que significa que a cólera se transformou em amor. Deus é amor. No entanto, esta verdade só é verdadeiramente percebida quando o fogo da alma se transformou: ele era o fogo da cólera e tornou-se no fogo no qual se reflete perfeitamente o amor de Deus. O amor é o fruto da alma que se converteu depois de ter estado sob o império da cólera porque ela estava separada de Deus. A verdadeira plenitude é inconcebível sem a rotura que é o sinal da cólera. Então, o amor é enriquecido pelo sofrimento que o fogo da cólera infligiu à alma. Isto é verdade para o ser humano, mas tudo o que acontece na natureza revela a história da alma e do nosso combate espiritual.
  23. Simbolizada por Marte, a cólera é masculina. O amor é, antes de tudo, a suavidade de Vénus, são virtudes femininas que então se manifestam. Quando a dualidade entre a cólera e o amor se resolve na luz, o homem e a mulher são transcendidos. O leão, que simboliza a luz, tem a imagem do ser humano virginal. Não é nem homem nem mulher.68 Mas Boehme, por outro lado, parafraseia o Génesis (49, 9) seguindo a versão de Lutero: o leão de Judá deitou-se como um leão e como uma leoa.69 Assim, o leão é macho e fêmea, mas ele não é nem macho nem fêmea.
  24. A luz do sol representa a totalidade tal qual ela é manifestada na nossa natureza. O leão branco, que representa esta totalidade, também é identificado com Mercúrio, que é um planeta, mas também o mercúrio dos filósofos. Mercúrio tem duas faces, a da cólera e a da beatitude. Nos dois setenários, o da natureza eterna e o da nossa natureza, Mercúrio aparece duas vezes. Mercúrio é o segundo espírito e o sexto. Portanto, simboliza, por um lado, a fase tenebrosa do ciclo e, por outro, a sua parte luminosa. Ele resume, portanto, a totalidade dinâmica. O leão é o símbolo de Mercúrio.70
  25. A transmutação que dá origem à luz do sol é a mesma que ocorre nos metais. O sol não é apenas o disco acima das nossas cabeças. O sol também está dentro das coisas. A luz é uma consonância que é um estado ontológico. Ela é a perfeição de todas as coisas.
  26. O que acontece na nossa natureza oferece a imagem do que acontece na natureza eterna. O opus químico, graças ao qual nasce a nossa luz, é o análogo do que ocorre na alma humana quando ela se une à Sabedoria divina. É assim que o leão branco, que é o leão púrpura, se refere a Cristo e à sua Sabedoria. Ele é o jovem cavaleiro que é o noivo da Sabedoria. Ele é o poder viril sublimado e unido à Sofia.71 O leão é o fogo unido à luz virginal, männliche Jungfrau.
  27. A luz não é apenas a perfeição que transcende os contrários, ela a produz. Toda a perfeição engendra. A tintura que leva todas as coisas à sua perfeição está na luz. É por isso que a luz preside a todos crescimentos. É ela que faz a vida florescer, que faz com que os frutos amadureçam e os metais cresçam. A vida só prospera quando os contrários se acordam para se superarem. A luz da nossa natureza representa os momentos privilegiados onde esse acordo se realiza, enquanto que as trevas são o sinal de dissonância.
  28. A luz é sinónimo de plenitude. Não há totalidade que englobe a luz e as trevas. A única totalidade é a da luz. Certo, para Boehme, a luz é ao mesmo tempo fogo e luz.72 No entanto, o fogo que entra nessa totalidade perdeu a sua natureza tenebrosa. Mesmo que, segundo uma fórmula cara a Boehme,73 a noite permaneça oculta por baixo do dia, as trevas não participam absolutamente nada na plenitude da luz. Ambas são, simultaneamente, prisioneiras e separadas. Ao ler Boehme, o leitor moderno deve abster-se de sonhar com uma totalidade que integraria as trevas. Esta é toda a diferença entre Boehme e Jung.
  29. Boehme define a luz como o casal do fogo e da luz. No entanto, ele lembra-nos constantemente que o fogo não se apodera da luz,74 o que é a sua maneira de parafrasear o Prólogo joanino: a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a recebem. O fogo que não se apodera da luz, é o fogo tenebroso. Se a luz compreende o fogo, se ela é o fogo, é porque o fogo se transformou: ele tornou-se na vida que faz irradiar a claridade. Apesar de tudo, o fogo tenebroso subsiste, mas ele está separado.
  30. A luz nasce do casamento entre o fogo e a água. Ela transcende-os de acordo com o que eles são na nossa natureza, ou seja, elementos separados. O fogo e a água, cada um por si, são a natureza, mas a luz é mais do que a natureza.75 Isto é verdadeiro nos dois planos, o da natureza eterna e o da nossa natureza. Em ambos os casos, a luz está a um nível que é intermediário entre o espírito puro, não encarnado numa substância, e a natureza.76
  31. O nosso sol brilha no seio da natureza, no entanto ele ultrapassa-a. A nossa natureza identifica-se ao spiritus mundi. O sol é mais do que o spiritus mundi.77 É ele quem, falando propriamente, é o Deus da nossa natureza. Certo, isto é apenas um reflexo do verdadeiro Deus. O nosso sol refere-se a outro sol que é o Filho, Deus manifestado na natureza eterna. Ele é o espelho no qual nós vemos a imagem desse verdadeiro Deus,76 uma imagem que no sol não contém a realidade suprema. Porém, se o sol é chamado de Deus da nossa natureza, é porque ele já a transcende. Não é ainda a transcendência perfeita, é uma analogia dela: a analogia vai a par da dessemelhança.
  32. Quando o ciclo primordial se realiza, Deus nasce no corpo da natureza eterna. Da mesma forma, o sol nasce segundo o setenário planetário. O ciclo da nossa natureza dá origem a dois nascimentos, o do sol é o segundo. O primeiro nascimento é o das estrelas que, todas reunidas, formam o nosso céu chamado astrum. O segundo nascimento é, portanto, o do sol que nasce das estrelas e que, no entanto, as transcende.
  33. Evocamos o nascimento das estrelas. A lua, o último do setenário, é a mulher dos outros seis planetas. A mulher é um corpo. Os outros seis planetas juntos formam este corpo que por seu turno os dá à luz, como se ele viesse antes deles.
  34. A lua representa o corpo comum de todas as estrelas. Ele aparece como o corpo do nosso mundo. Os outros seis planetas são a sua alma. O corpo é a esposa, a alma é o fogo viril. A alma forma o corpo e engendra-se nele. O nosso mundo é como uma pessoa que sozinha representaria a união do homem e da mulher, da alma e do corpo. Esta união não é eterna, porque o nosso mundo passará.
  35. O nascimento das estrelas é o equivalente do nosso nascimento terrestre. A do sol corresponde ao nosso segundo nascimento.
  36. Desta vez, são as estrelas que dão origem ao sol.79 Elas eram o macho que fecundou a lua, desta vez elas são a mãe. A perspectiva muda, mas a mãe permanece inferior ao fruto do seu corpo. No entanto, o sol, por sua vez, fará florescer a vida no corpo deste mundo.
  37. Anteriormente, os seis planetas eram a alma que projetava no corpo da lua, o sétimo, o desejo de cada um para ali se engendrar. Agora, eles são o corpo no qual o sol vai brilhar. O sol é o sinal do espírito que aparece na alma quando nós nascemos de novo. Com relação ao espírito, a alma é um corpo, é o seu receptáculo. Pelo contrário, relativamente à materialidade do corpo onde ela própria habita, é da natureza sutil de um espírito. É assim que o astrum é tanto a alma do mundo quanto o corpo que dá origem ao sol.
  38. O espírito transcende a alma, a qual é o seu corpo. Por analogia, o sol transcende a alma do mundo, o astrum. O espírito relaciona-se com a Sabedoria que habita na alma quando Deus nasce em nós. O nosso sol representa a Sabedoria. Ele irradia no seio do terceiro princípio, tal como a Sabedoria dentro do corpo da natureza eterna.
  39. Assim, a nossa natureza oferece-nos a imagem de dois nascimentos segundo dois modos de união. Primeiro, é a alma e o corpo que se unem como um homem e uma mulher. Depois, são a alma e a Sabedoria. A primeira união dá-se dentro do mesmo princípio, o terceiro, a nossa natureza. A segunda, opera-se segundo a dimensão vertical.
  40. Num tratado sobre a penitência,80 Boehme trata da relação entre a alma e a Sabedoria. A alma é o noivo, a Sabedoria a noiva. A alma é o fogo com o qual a esposa quer ser penetrada: a Sabedoria é a claridade que precisa do brilho do fogo para ser luz. A Sabedoria chama a alma a se manifestar nela. O que ela pede ao seu noivo, o jovem cavaleiro, é uma alma81 para se encarnar. Ela diz-lhe: "Sê o fogo, e eu serei a água."82 Assim, a Sabedoria é, no plano da vida espiritual, a noiva que aguarda ser fecundada pelo esposo. Ela é a água que bebe o fogo para dar luz.83 Ela é Deus cuja imagem se alimenta da criação.
  41. No entanto, para se transformar em luz pela virtude da água, o fogo viril tem que renunciar-se a si próprio. Ele tem que se abandonar completamente à suavidade mágica da água. O seu desejo violento, que traduz a vontade da criação de se afirmar por si própria, tem que extinguir-se para dar lugar ao desejo de dar-se, que é um desejo de amor. O fogo exaltava-se, segundo a sua natureza, e tem que recair. Um outro fogo nasce, segundo uma vontade contrária. Este fogo que se dá é a luz, que é amor. O primeiro fogo era o desejo voraz, possessivo. A característica própria da luz é comunicar-se.
  42. A Sabedoria deseja o fogo da alma para se encarnar nele. No entanto, ela só pode receber esse fogo se ele se entregar completamente a ela. Então, o fogo será a claridade da Sabedoria, essa pureza, essa virgindade que era a causa e o objeto do seu desejo de amor. E através dele, a claridade primordial tornar-se-á numa luz, quer dizer, tornar-se-á visível, porque ela terá um esplendor, ela brilhará. Toda manifestação divina ocorrerá sob esta forma visível e perceptível da claridade primeira da Divindade. É o fogo que o permitirá, é por isso que a Divindade se engaja na natureza para se manifestar nela. Ora, o fogo produz primeiro o muro de trevas que esconde essa claridade. Para que ela apareça, o fogo tem que se converter a ela, tem que se tornar num fogo virginal.
  43. A claridade primeira é a do Um não dividido, considerado fora da natureza, isto é, de toda a natureza. Essa claridade, que não é a luz, não poderia ser contemplada. Para que ela seja perceptível, o Um tem que se dividir. No absoluto da sua unidade primordial, anterior a toda manifestação, o Um é para sempre incognoscível. A claridade do Um, a sua pureza perfeita, não são para nós senão o Nada, que é o que significa a palavra Ungrund, que designa o Absoluto em Boehme. Para que essa claridade se manifeste, para que ocorra a teofania, que é o essencial na teosofia de Boehme, é preciso que nasça qualquer coisa.84 É preciso que o Nada se adorne com as cores do Ser que será a plenitude das obras divinas. Este Ser vai-se formar graças à natureza. Ora, o qualquer coisa que é produzido a partir do Nada é uma vontade que se exalta por si própria, separando-se, pelo menos na aparência, da vontade divina que a engendrou e contradizendo-a.
  44. A vontade do macho que se afirma por si próprio, que é o eu possessivo e dominador, traduz essa dualidade que está no nascimento do Ser. Para que esse antagonismo cesse, o poder viril tem que se renunciar a si mesmo, a vontade própria tem que morrer. Somente a virilidade sublimada pela renúncia será recebida pela Sabedoria, que é o espelho imaculado da claridade divina, que é ela própria essa claridade. O noivo que abandona toda vontade própria é a criação que se oferece a Deus. É então que ela é verdadeiramente exaltada, não mais segundo a sua vontade própria como Lúcifer acreditava, mas segundo a vontade de Deus expressa na sua Sabedoria.
  45. Nos Três Princípios já encontramos um diálogo semelhante entre o noivo e sua noiva divina, a Sabedoria.85 O noivo representa o espírito da natureza que deseja a Virgem celeste. Ele é o poder viril da alma. Mas, na verdade, ele quer ser a noiva que será fecundada pelas obras da Sabedoria. O esposo torna-se esposa. É somente a esse preço que ele pode verdadeiramente unir-se à Sabedoria. Ele terá que renunciar à sua vontade própria, que está unida ao seu poder viril. Enquanto ele for apenas esse poder viril, a Sabedoria recusar-se-á a ele. Ela lhe dirá: "Eu sou uma virgem e tu és um homem (ein Mann), tu sujarias a minha pérola, tu quebrarias a minha coroa".
  46. A alma permanece, para Boehme, um poder viril. No entanto, ela é capaz de se submeter a Deus como uma esposa. A união com a Sabedoria só pode ser realizada num espírito de perfeita submissão. A união da criatura com Deus é o modelo da reconciliação dos contrários. Esta união mostra que a reconciliação dos contrários só pode ser concebida na perspectiva duma transcendência.
  47. Estar unido à Sabedoria é tornar-se na sua imagem, assim como a Sabedoria é o espelho imaculado de Deus. Assim, a alma é em si própria uma plenitude que é a imagem de uma outra plenitude, a da Sabedoria. Não se deve, portanto, imaginar a alma e a Sabedoria formando, cada uma, a metade dum casal, sendo a Sabedoria apenas a esposa.
  48. Certo, a Sabedoria assume as características da esposa feminina. Acabamos de vê-la identificada com Vénus, cuja suavidade feminina desarmou a cólera de Marte. No entanto, a Sabedoria de Boehme é infinitamente mais do que uma mulher.
  49. Lembremo-nos do exemplo da mulher mais sublime, que é Maria, mãe de Cristo. Maria é o modelo da alma humana habitada pela Sabedoria e que dá nascimento ao ser humano novo. Ora, ela não se confunde com a Sabedoria que, no entanto, opera nela. A plenitude da Sabedoria encontra-se apenas no fruto do seu corpo. E este fruto destaca-se dela como da árvore. O Cristo de Boehme separa-se da sua mãe, a mulher terrestre, para não ter mais que uma mãe, segundo a sua humanidade celeste, que é a Sabedoria. A mulher é transcendida pela Sabedoria, que não é apenas a mãe de Cristo, mas também a sua esposa. Como mulher terrestre, Maria é apenas mãe. Ela dá à luz aquele que a deixará.
  50. A característica própria da Sabedoria é a de não ser nem homem nem mulher. É isso que significa a sua virgindade, que é a perfeita indeterminação de Deus fora da natureza, segundo a sua transcendência absoluta, da qual a Virgem celeste participa.
  51. Deus traz a natureza à existência a fim de manifestar a sua Glória nela. Deus cria a divisão entre o homem e a mulher sem a qual a natureza não se objetivaria. Depois, Deus põe fim a essa partilha fazendo nascer na alma da criatura humana o desejo duma clareza que é anterior à natureza e que revela por si própria a Sabedoria, o duplo de Deus. A virgindade da Sabedoria é essa claridade que em si própria não é nem fogo nem luz e que, no entanto, se manifestará na luz, não sem a prova do fogo. A luz nasce do desejo universal por essa claridade. A Sabedoria é tanto o objeto desse desejo quanto a sua causa ativa. Ela produz a luz e ela manifesta-se nela. A luz é o corpo no qual se encarna o desejo de Deus que anima todos os mundos. Unida a este corpo, a Sabedoria, no entanto, transcende-o. Existem, em Boehme, diferentes graus de transcendência, mas a Sabedoria está no ponto mais alto daquilo que o ser humano pode conceber. A sua virgindade é o símbolo perfeito da transcendência divina.
  52. Não há plenitude verdadeira senão segundo essa transcendência que é sinónimo de pureza perfeita. A natureza torna-se participante dela, mas com a condição de que a graça divina permita que ela se supere. Os poderes da alma, masculinos e femininos, só se unem sob a ação do Espírito Santo que, irrompendo nas suas profundezas, transformam-na radicalmente. A alma só encontra a sua unidade e a sua plenitude em função duma realidade que, certo, se manifesta na sua profundeza, mas que, no entanto, a ultrapassa infinitamente. Presente na alma, a Sabedoria mantém a sua transcendência absoluta. É por isso que ela não pode pertencer à alma como um bem próprio, pelo menos na pré-eternidade que se oferece aos eleitos durante a sua permanência terrestre, é o que emerge ao longo dos dois diálogos que evocamos.
  53. A graça, que permite à alma unir os seus poderes para se superar a si mesma, é dada ao ser humano na forma duma semente que está em cada um de nós. É a semente que Deus colocou no seio de Eva depois da queda, quando disse à serpente: “Porei uma inimizade entre ti e a mulher, entre a tua posteridade; ela ferirá a tua cabeça e tu ferirás o calcanhar dela”.86 Parafraseando a Bíblia de Lutero e através dela a Vulgata, Boehme não diz posteridade ou linhagem, mas sim semente. É, em virtude de uma semente ou de um germe, que a posteridade de Eva, na pessoa de Cristo, esmagará a cabeça da serpente.
  54. Boehme vê essa semente tanto como um germe quanto como um útero. Ela é o útero que era, no corpo precioso de Adão, a fonte da vida verdadeira. No entanto, tal como Deus o transplantou para o seio de Eva, esse útero está fechado. Ele está como que seco, tal como o ramo de Aarão antes de reflorescer. Ele só será reaberto sob o efeito da Palavra divina, quando o anjo Gabriel anunciar a Maria o nascimento divino. É desse útero ou desse germe que Cristo nascerá segundo a sua humanidade celeste.87
  55. O germe está enterrado no seio da mulher como dentro da terra, no entanto, ele está como que morto enquanto não for ativado pela voz do anjo que carrega o Espírito Santo. Por si mesma, a mulher terrestre só pode dar à luz um ser terrestre que será governado pelo fogo masculino da natureza. Se o útero divino se abrir nela, não é mais ela que dará à luz, mas a Sabedoria segundo o Espírito Santo. E o fruto concebido no seio de Maria superará infinitamente o seu ser de mulher terrestre.
  56. O germe depositado no seio de Eva é transmitido à posteridade e é no seio de Maria que ele frutificará. No entanto, ele está dentro de todas as almas, seja qual for o sexo da pessoa. Aquilo que se produziu no seio de Maria é o modelo da maternidade da alma. Para Boehme, a alma dá à luz como o corpo, mas o seu fruto também a supera infinitamente. No entanto, é nesse fruto que ela se realiza. A mulher terrestre apaga-se atrás dos seus filhos enquanto que a alma que dá à luz Cristo é exaltada nele.
  57. A alma não atinge a plenitude senão pelo fruto que produz. Maria não tem acesso à verdadeira vida senão quando se torna participante do corpo que se formou dentro do seu. A alma torna-se mãe segundo o Espírito Santo, mas ao mesmo tempo é ela quem nasce de novo. O ser humano não se realiza espiritualmente senão engendrando e engendrando-se pela graça que recebe e que se encarna na sua profundeza.
  58. Adão tinha dentro de si o divino útero no qual a Sabedoria estava ativa e que, transmitido por Eva à sua posteridade, dará um fruto no seio de Maria. Adão deveria ter gerado pela virtude desse útero, porém permaneceu estéril. O corpo glorioso de Adão não frutificou noutros corpos, como o de Cristo. É por isso que a plenitude de Adão não foi a verdadeira totalidade, aquela de Cristo que, nos corpos dos seus irmãos, se tornou tudo em todos.
  59. Porquê ele não gerou? Boehme invoca a razão da culpa dele. Adão caiu no sono, então os seus pensamentos voltaram-se para o spiritus mundi.88 Ele perdeu o útero celeste graças ao qual poderia ter gerado o seu semelhante, e foi Eva, a mulher, mãe de todas as criaturas terrestres que nasceu. Depois, Adão uniu-se a Eva, mas foi Caim que ele gerou.
  60. Porquê Adão não gerou antes de cair no sono, quando o seu corpo de luz ainda estava intacto? A explicação é que ele só teve esse corpo a título probatório. Durante todo o tempo passado no paraíso, que foi de quarenta dias, como para Cristo no deserto,89 Adão passou por uma prova. Foi tentado e sucumbiu. Se tivesse saído vitorioso, como Cristo, ele já teria gerado.
  61. A prova, a que foi submetido Adão, é o modelo do combate espiritual que os seres humanos terão que travar antes de nascer de novo. Cristo, irmão mais velho deles, foi ele próprio provado, não apenas no deserto, mas na sua Paixão, antes da sua ressurreição que é para Boehme o modelo do nosso segundo nascimento.90
  62. É paradoxal que Adão e Cristo, já nascidos segundo o Espírito Santo, tenham que nascer de novo. Mas no espírito de Boehme, só pode haver verdadeira perfeição no final dum combate. Ora, só há combate para o ser humano que não é desde o início uma criatura angélica, que é antes de tudo uma criatura terrestre e que terá que lutar para mudar de condição. É por isso que a verdadeira plenitude é a de Cristo que foi como cada um de nós. Cristo é o modelo do cavaleiro que trava o combate da alma para nascer de novo. Ele é o leão que é branco porque representa a Sabedoria, mas vermelho de acordo com o seu poder viril.
  63. Cristo nasceu do seio de Maria com uma alma que era o fogo viril da natureza.91 Ele transmutou esse fogo pelo efeito do amor divino.92 Ele transformou o fogo viril temperando-o com as virtudes femininas e fez dele o corpo da Sabedoria. Ele apareceu como o símbolo do fogo sublimado unido com a claridade da Sabedoria. É isto que a expressão männliche Jungfrau significa quando aplicada a Cristo.
  64. A verdadeira união é, em Boehme, aquela entre as duas naturezas de Cristo, uma divina, a outra humana, em linguagem teológica, a união hipostática. É a união entre o ser humano e a Sabedoria objetivada na pessoa realizada do ser humano virginal, männliche Jungfrau. O ser humano é a alma humana, é o fogo viril da natureza, o esposo da Sabedoria que Boehme chamava de espírito da natureza. É a criatura unida a Deus na sua Sabedoria.
  65. A criatura unida a Deus é o ser humano. Em alemão, o ser humano é chamado Mensch quando se trata do ser humano sem distinção de sexo, ou Mann quando se designa o masculino. Boehme usa a palavra Mensch para dizer que Deus se fez ser humano e para falar da natureza humana unida à natureza divina. A união das duas naturezas é aquela entre a nossa humanidade, seja homem ou mulher, e a Sabedoria que é Deus comunicando-se à criação. No entanto, Boehme também diz Mann por Mensch, é o que ocorre na expressão männliche Jungfrau. O ser humano virginal é então a humanidade viril santificada pela Sabedoria.
  66. A mulher está incluída nesta humanidade masculina tal como ela estava no corpo de Adão antes do nascimento de Eva. A totalidade de Adão inclui, por um lado, a sua humanidade celeste, por outro, a Divindade que habita nele sob os traços da Sabedoria. Ora, o discurso de Boehme mostra que, no seu espírito, essa humanidade é masculina. Boehme transfere para a Sabedoria as virtudes femininas graças às quais o fogo viril é sublimado, mas ao mesmo tempo opõe a Sabedoria e a mulher. Falando de Adão antes da queda, Boehme diz que ele era uma virgem, mas sem o corpo de uma mulher: ohne weibliche Gestalt.93 Essa restrição é bastante significativa.
  67. No plano da criatura, a mulher existe apenas em relação ao homem, de quem ela foi extraída. Eva não tem ser próprio. Deus não criou a mulher. Deus só criou Adão, Deus não criou Eva, diz Boehme em contradição com as palavras do Génesis (1, 27} sobre as quais outros se basearam para sustentar a noção de andrógino: "Ele criou-os homem e mulher."94 Eva nasceu desse ser único que Boehme considera ser um ser masculino quando os sexos ainda não tinham aparecido. O que faz a plenitude do Adão celeste é, em última análise, a união desse ser masculino com a Sabedoria. Aqui produz-se outra projeção em retrocesso: Boehme atribui ao Adão celeste, o primeiro, a virilidade santificada do segundo Adão.
  68. Cristo, nascido do seio duma mulher, é um ser viril. Porquê Cristo se fez homem? Boehme faz essa pergunta depois de tantas outras, mas não diz apenas Mensch, mas também Mann. Porquê Cristo se tornou num homem, e não numa mulher? Porque na pessoa de Cristo, era a humanidade celeste de Adão que devia ser restaurada. Era o sangue do primeiro homem, entenda-se do primeiro ser humano viril (des ersten Mannes), que deveria prevalecer, e não o sangue terrestre da mulher.95 Oposta à Sabedoria, a mulher representa a natureza impura, enquanto que o sangue viril do Adão glorioso, que será o de Cristo, simboliza a natureza celeste que está unida à Sabedoria como seu corpo. É o sangue viril que é puro, o do leão branco.
  69. Assim, o Salvador é Cristo, a virgem viril. É graças ao sangue viril de Cristo que a mulher também pode tornar-se imagem de Deus, nós estamos a reportar textualmente o propósito de Boehme.96
  70. Certo, o fogo viril, que é a quintessência da natureza unida a Deus, é um fogo purificado. O ser humano celeste unido a Deus é um ser humano circuncidado, o que significa que o membro que simbolizava a queda de Adão foi removido.97 A virilidade do ser humano celeste é sublimada, no entanto, ela continua a ser sempre o princípio viril.
  71. Boehme fala das qualidades femininas que devem unir-se aos valores viris para temperá-los. São essas qualidades femininas, trazidas de volta à luz, que devem aplacar a cólera do fogo. Mas lemos, por outro lado, que o sangue da mulher não poderia por si mesmo ter desarmado a cólera de Deus como o sangue viril que Cristo derramou.98 Somente esse sangue viril, santificado pelo amor divino e tornado ele próprio no fogo do amor, era capaz. E é pela Sabedoria, não pela mulher, que Deus dá o seu amor ao ser humano. Eva continua a ser o símbolo da nossa condição terrestre que devemos deixar, e o amor vem do alto pela graça de Deus, a qual se derrama na natureza para se encarnar nos corpos de luz.
  72. Certo, a semente depositada no seio de Eva contém o amor divino que frutificará no seio de Maria. A Sabedoria está presente por baixo da carne da mulher terrestre. Mas quando a Sabedoria dá à luz, Eva é dilacerada, ela não significa nada mais para além do nosso envelope perecível.
  73. Cristo nasce duma mulher porque é através da mulher que se transmite o fogo viril da alma. Cristo reveste uma alma humana no seio de Maria e ele mesmo será o fogo viril. É assim que ele se faz homem. No entanto, a graça substancial derramada no seio de Maria, quando a voz do anjo ressoa,99 terá santificado esse fogo. Cristo será assim o fogo sublimado da alma unida à Sabedoria para ser o seu corpo.
  74. No seio de Maria, é a Sofia divina, e não a mulher, quem opera a transmutação do fogo viril.100 Por outro lado, é o homem que santifica a mulher. É Cristo, a virgem viril, männliche Jungfrau, que santifica a sua mãe e a mulher nela. A mulher é batizada pelo homem, é por isso que Deus ordenou a circuncisão só para os homens.101
  75. Todo o ser, nós vimos, é regido por uma espécie de espírito reitor graças ao qual ele tende para a perfeição e que Boehme, recorrendo ao vocabulário da alquimia, chama de tintura. A perfeição, para a qual a nossa tintura nos conduz, é maior ou menor de acordo com a nossa condição. Consequentemente, é a própria tintura que aparece na medida dessa condição. A do ser humano não tem a mesma eficácia dependendo se estamos no nível da natureza terrestre ou se já revestimos um corpo celeste. No primeiro caso, a nossa tintura está enfraquecida. A mulher, como tal, possui apenas essa tintura imperfeita. É esta tintura própria da nossa condição terrestre, representada por Eva, que Cristo santifica. Ora, para Boehme, santificar a tintura feminina é reconduzi-la ao que ela era antes do nascimento da mulher, ou seja, uma tintura viril, aquela que governava o corpo celeste de Adão.
  76. Santificar a mulher é convertê-la novamente em homem segundo a humanidade celeste de Adão. Quando esta obra de santificação estiver completada, o homem e a mulher não serão mais do que uma só carne, eles serão verdadeiramente um só corpo. Eles não serão mais nem homem nem mulher, diz Boehme, o que significa que cada um de nós, homem ou mulher, pode elevar-se ao nível da natureza eterna e que assim a diferença entre os sexos é abolida: a mulher, ela também, pode tornar-se na imagem de Deus. Ora, o que será a criatura para além dessa diferença? Ela será unida à Sabedoria e tornar-se-á participante da natureza divina. Segundo a Sabedoria manifestada nela, ela será chamada virgem, mas segundo a sua natureza humana, ela será um ser viril. Assim, uma mulher que adquire o privilégio do segundo nascimento torna-se num homem unido à Sabedoria. Ela é o ser humano virginal designado pela expressão männliche Jungfrau.102 Uma vez santificada, a mulher é uma virgem viril.
  77. Pela graça do segundo nascimento, a criatura não é mais macho ou fêmea. Mas, de fato, a mulher acede à condição celeste do homem para se tornar um com ele. Então, Eva deixou de existir por si mesma, não apenas na criatura nascida mulher, mas também no homem nascido da mulher. Como tal, a mulher representa a natureza terrestre que deve ser abolida em todas as criaturas, qualquer que seja o sexo do seu nascimento. Ela não é, em si, a emanação de Satanás, ela é o espírito deste mundo, ela é a atração que o spiritus mundi exerce sobre a criatura e que fez com que Adão se perdesse. Ela encarna o desejo da criatura que a torna escrava dos bens deste mundo, a sua concupiscência. Ela está no fruto que Adão prova e que a entrega ao spiritus mundi.103
  78. A mulher encarna a natureza terrestre que o ser humano deve deixar para se tornar participante da natureza divina. Ela pode elevar-se, como o homem, mas somente nele e por meio dele. Para a mulher, Deus é antes de tudo o homem.
  79. É neste espírito que Boehme parafraseia a primeira epístola a Timóteo. É por meio do homem que a mulher entra na aliança celebrada entre Deus e o seu povo, ela está associada a essa aliança apenas como parte integrante do ser humano.104 É por isso que ela deve ser submissa ao homem. A mulher não pode realizar a sua salvação por si própria. A mulher, um ser terrestre, é Eva separada de Adão. Esta separação é o sinal do pecado e do confisco, é preciso que ela cesse com vista ao restabelecimento.
  80. É verdade que se o homem transcende a mulher, é somente pela Sabedoria que opera nele e à qual Boehme atribui as virtudes femininas unidas na suavidade. Não é menos significativo que ele tire essas virtudes da mulher para dá-las a Deus. Boehme opõe a virgindade da Sabedoria e o sangue impuro da mulher.
  81. Eva profanou o útero virginal que estava no corpo cristalino de Adão. Certo, é no seu seio que Deus colocou a semente graças à qual esse corpo será restaurado na sua integridade. Esta semente é a semente da mulher. É ela quem esmagará a cabeça da serpente, e então a plenitude será novamente expressa. Mas, de fato, essa semente da mulher é apropriada à Sabedoria, de modo que, no final, é a mulher que é a serpente sobre a qual a Sabedoria triunfará.
  82. Enquanto que a criança nascida do homem e da mulher é um monstro, comparada com a santidade de Deus, a Sabedoria dá à luz um Filho que é o símbolo da humanidade reencontrada. A mulher do Apocalipse que dá à luz este Filho é de fato a Sabedoria. Ela está revestida com o sol e tem a lua sob os seus pés. A lua é a mulher terrestre que não representa mais nada para além da nossa natureza animal.105 É Eva, a cortesã, sobre quem triunfa a Sabedoria. Eva é também o dragão que também habita no seio da mulher terrestre e que quer engolir o divino Filho.106
  83. No final das contas, Eva não representa nada mais do que a natureza inferior, aquela que não foi transmutada e que é como que residual. As virtudes femininas foram-lhe retiradas, elas foram transferidas para a Sabedoria, ou seja, para Deus. Todas essas virtudes se fundem no amor, figurado por Vénus no quinto grau da natureza eterna. Ora, é a Vénus celeste que se identifica com a Sabedoria, enquanto que a mulher, ser separado, é apenas a Vénus vulgar, símbolo da concupiscência. A Vénus celeste é uma virgem, a outra Vénus é uma símbolo daquilo que é murcho.107
  84. É graças ao amor que o ser humano recupera a sua integridade. É o amor que produz a transmutação sob o efeito da qual o fogo viril se expande em luz. Ora, o amor só pode vir de Deus. O amor vem do alto. Ele está no sopro de Deus que deu origem aos mundos. Ele está no fogo, mesmo sob a aparência da cólera. Ele manifesta-se no fogo da alma quando esta regressa para Deus.
  85. É o amor que cria a verdadeira plenitude, aquela que une Deus e a humanidade cheia da sua Glória. A Virgem do Apocalipse simboliza essa plenitude. Ela usa na cabeça uma coroa de doze estrelas. A totalidade está nessa coroa: seis estrelas representam a Divindade, as outras seis a humanidade. Essa totalidade é a da união hipostática: Deus e o ser humano estão unidos na pessoa de Cristo. Esta união reproduz-se de cada vez que um fiel irmão de Cristo se torna filho de Deus, pela graça da verdadeira conversão, da qual o segundo nascimento é o fruto. Cristo é, para Boehme, o modelo do ser humano habitado por Deus. Não há verdadeira totalidade exceto nesta união entre o ser humano e Deus. O ser humano só atinge a sua verdadeira estatura se Deus o eleva a si mesmo na sua Sabedoria.
  86. A união hipostática, que para Boehme é o modelo do reencontro entre Deus e o ser humano, é uma união sem confusão e que só pode ser concebida segundo a dimensão vertical. Deus transcende a criatura, embora a tenha elevado a si mesmo e se una a ela: Maria, símbolo da alma humana no seio da qual Deus nasce, não é Deus ela própria.108
  87. Se podemos falar de uma coincidentia oppositorum em Boehme, é unicamente segundo esta perspectiva ascendente. Os contrários, são Deus e a criatura. A união dos contrários, que absolutamente não é a sua fusão pura e simples, realiza-se em função duma transcendência que é evidente para Boehme. É sempre uma união entre um alto e um baixo. Para a criatura, a verdadeira totalidade só se encontra na sua relação com um Deus que a supera infinitamente. Não há totalidade do ser humano sem esse Deus cuja soberania absoluta Boehme proclama. A criatura não se realiza apenas por si mesma, pelas suas próprias virtudes. Para que ela floresça, a graça de Deus tem que ser derramada nela. Para Boehme, esta graça é uma realidade absoluta.

Notas

  1. Aurora, c.6,12. [  ]
  2. Mateus 23,30-31; Mysterium Magnum, c.18,2. [  ]
  3. Ver em cima, n.59. [  ]
  4. Aurora, c.2,14-15. [  ]
  5. De signatura rerum, c.11,39-45. [  ]
  6. Aurora, c.26,34. [  ]
  7. De signatura rerum, c.4,37. [  ]
  8. De triplici vira hominis, c.90. [  ]
  9. De signatura rerum, c.4,37. [  ]
  10. Ibid., c.11,44. [  ]
  11. Mysterium Magnum, c.76,40. [  ]
  12. De signatura rerum, c.11,43. [  ]
  13. Ibid., c.11,44. [  ]
  14. Ibid., c.16,25. [  ]
  15. Aurora, c.8,7; De electione gratiae, c.4,48. [  ]
  16. Sex puncta theosophica I, c.2,34. [  ]
  17. Apologia I. contra Balth. Tilken, 486. [  ]
  18. Sex puncta theosophica I, c.2,34. [  ]
  19. De electione grariae, c.2,24. [  ]
  20. De tribus principiis, c.8,13. [  ]
  21. Aurora, c.3,21. [  ]
  22. Christosophia I, De poenitentia vera, 30 sq. ]
  23. De signatura rerum, c.11,44. [  ]
  24. De poenitentia vera, 5l. [  ]
  25. Sex puncta theosophica I, c.1,60. [  ]
  26. Mysterium Magnum, c.3,5; Christosophia VI, Theoscopia, c.l,17; Epistolae theosophicae, ep. 47,34. [  ]
  27. De tribus principiis, c.12,38 sq. ]
  28. Génesis 3,15; De incarnatione verbi I, c.3,15; Mysterium Magnum, c.23,29. [  ]
  29. Mysterium Magnum, c.19,9-13. [  ]
  30. De tribus principiis, c.17,29-33; Aurora, c.19,74; Mysterium Magnum, c.54,4. [  ]
  31. De tribus principiis, c.17,28; c.25,81; Mysterium Magnum, c.18,19. [  ]
  32. De signatura rerum, c.1,50. [  ]
  33. Mysterium Magnum, c.23,44. [  ]
  34. Ibid., c.56,20. [  ]
  35. De triplici vira hominis, c.1,15. [  ]
  36. De incarnatione verbi I, c.7,13 sq.; ver Eugène Susini, Franz von Baader et le romantisme mystique, Paris, 1942, t.2, p.359. [  ]
  37. De incarnatione verbi I, c.7,13. [  ]
  38. De tribus principiis, c.13,18-19. [  ]
  39. De incarnatione verbi I, c.7,13. [  ]
  40. Ibid. ]
  41. Apologia I. contra Balth. Tilken, 331. [  ]
  42. Mysterium Magnum, c.41,33. [  ]
  43. Ibid.; De incarnatione verbi I, c.7,13. [  ]
  44. Myrterium Magnum, c.58,46; De incarnatione verbi, c.7,16, [  ]
  45. De tribus principiis, c.15,35. [  ]
  46. De incarnatione verbi, c.7,14. [  ]
  47. Apocalipse 12,1 sq.; Mysterium Magnum, c.23,35 sq. ]
  48. Mysterium Magnum, c.66,34. [  ]
  49. Ibid., c.10,53. [  ]
  50. De triplici vita hominis, c.9,65. [  ]
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