O Ser Humano Virginal - 3. O Terceiro Princípio

  1. Não conhecemos a luz sem a escuridão, nem o amor sem a cólera, nem a alegria sem o sofrimento, nem o bem sem o mal. Ora, somente o ser humano terá a inteligência do bem e do mal manifestadas ao mesmo tempo. O ser humano vê mais do que os anjos. Estes só contemplam o céu, enquanto que o olhar do ser humano também mergulha nas profundezas do inferno. Se o ser humano vê o céu e o inferno, é porque está colocado entre os dois.19 Claro, se Boehme insiste nessa visão do abismo, não é porque seja um fim em si mesmo. Não há em Boehme a menor complacência para com a noite. No entanto, a revelação do inferno é necessária.
  2. Nós conhecemos segundo aquilo que nós somos. Se o ser humano tem a vocação para conhecer o bem e o mal, é porque tem uma condição diferente dos anjos. O ser humano nasce num mundo terrestre que, uma vez criado, constitui um novo princípio, o terceiro.
  3. Até então, a manifestação divina ocorria segundo a alternância de dois princípios: o primeiro era o mundo da noite e da cólera, o segundo era o reino da luz e do amor. Eis que aparece este terceiro princípio que é a dualidade entre os dois primeiros. Nascido no mundo terrestre segundo o terceiro princípio, o ser humano participa tanto do primeiro como do segundo.
  4. O ser humano não se identifica apenas com o terceiro princípio. Ele não é apenas a dualidade entre os dois primeiros princípios objetivada no terceiro. O ser humano é também o primeiro princípio e o segundo, cada um considerado em si mesmo. A totalidade do ser humano, superior à dos anjos, abrange os três princípios. O ser humano não é apenas um ser humano terrestre, ele tem o céu e o inferno dentro de si.
  5. O primeiro princípio e o segundo juntos constituem a natureza primordial, chamada eterna. O terceiro princípio especifica uma outra natureza, a nossa. A natureza terrestre também tem o seu setenário, é o dos planetas. Cada uma das duas naturezas tem o seu céu e a sua luz. Abrangendo os três princípios, o ser humano pertence às duas naturezas. Pelo seu primeiro nascimento, aqui em baixo, ele está ligado à natureza terrestre. Pelo privilégio do segundo nascimento, ele participa da natureza eterna sob o seu aspecto luminoso. Ele também pode tornar-se filho das trevas que estão dentro dele.
  6. O terceiro princípio é objetivado no ser humano quando o corpo terrestre de Adão, anteriormente oculto pelo seu corpo de luz, se manifesta. O mesmo já tinha acontecido com o nosso céu e com a nossa terra. Quando o ser humano terrestre aparece, ele é a imagem do macrocosmo governado pelo setenário planetário, enquanto que o ser humano celeste era a imagem do céu dos anjos.
  7. A nossa natureza é personificada pelo espírito que a governa e a que Boehme chama de spiritus mundi. Esta alma do mundo é um Verbo criado20 que é o símbolo do terceiro princípio, o que significa que os outros dois se encontram ali. Há nele dois influxos, um emanando da Virgem celeste, o outro do príncipe das trevas.
  8. Encontramos esta ambivalência na serpente que propõe o fruto proibido. Em Boehme, a serpente às vezes tanto é uma Virgem celeste, como às vezes é um símbolo de feminilidade maligna. A serpente que tenta Eva e Adão é como a árvore que dá o fruto: representa a dualidade do bem e do mal. E ao comer esse fruto, Adão e Eva apenas autenticam a sua pertença a essa natureza na qual o bem e o mal se encontram. A árvore do conhecimento do bem e do mal é o símbolo do seu destino terrestre. Relaciona-se com a alma do mundo, o spiritus mundi. E quando Adão e Eva comeram o fruto proibido, foi de fato ao spiritus mundi que eles foram entregues, enquanto que segundo o seu corpo celeste Adão estava unido à Sabedoria divina.
  9. Adão perdeu o seu corpo celeste, ele já não é mais do que um ser humano terrestre segundo o seu corpo animal. O ser humano é amaldiçoado. No entanto, ao contrário de Lúcifer, ele pode ser salvo e ter acesso a um novo estatuto de ser humano celeste que, no espírito da Boehme, será superior ao primeiro. A contemplação do ser humano renovado será mais perfeita do que a do primeiro Adão, porque ela será nutrida pelo conhecimento do mal sem o qual o bem não se revela plenamente. A beatitude do ser humano regenerado será superior à do ser humano que conheceu o seu corpo celeste antes do seu corpo terrestre, porque a verdadeira alegria brota na alma que passou pela prova do sofrimento.
  10. Compreendemos porque a dualidade do bem e do mal é um momento necessário da manifestação divina. Ela objetiva na alma humana o confronto entre a luz e as trevas que Boehme evocou pela primeira vez em termos de uma cosmogonia mística. O bem é a luz, o mal é o fogo devorador que é tanto o fogo da cólera divina quanto o da Geena.
  11. A dualidade do bem e do mal anda a par com a dos sexos. Ao provarem o fruto que simboliza a ciência do bem e do mal, Adão e Eva já representam a dualidade universal, porque em cada um deles, o ser humano não é mais do que uma metade. A dualidade dos sexos é já o efeito de uma queda para a qual a história da maçã é apenas um epílogo.
  12. O nascimento da mulher consagra a queda de Adão. Qual é a causa desse rebaixamento? É o sono de Adão.21 A vocação dos anjos é contemplar Deus incessantemente, os seus olhos nunca se devem fechar. Adão adormece, então a sua imaginação extravia-se. Para Boehme, o sonho presta-se apenas a fantasias doentias. O sonho é para o Maligno a oportunidade de exercer a sua sedução. O sedutor atrai o olhar de Adão para o seu corpo animal que ele ainda não conhecia. Adão fica fascinado com essa imagem e identifica-se totalmente com ela. Ora, no momento em que o corpo terrestre de Adão é objetivado, ele divide-se em dois. Segundo o seu corpo animal, Adão não está mais sozinho, ele torna-se em Adão e Eva. O nascimento de Eva, separada de Adão, consagra a dualidade dos sexos, que é a característica da natureza animal.
  13. A dualidade dos sexos já existe no macrocosmo que foi criado para ser a morada de Adão e que é governado pelo setenário dos planetas. Ela estava prefigurada no setenário primordial. Nós falamos de Marte e de Vénus em termos da natureza anterior. Num momento em que os planetas ainda não haviam sido criados, esses nomes designavam as virtudes dinâmicas que eram os seus arquétipos. Agora que os planetas são criados, eles são objetivados de acordo com as suas qualidades viris ou femininas. Assim Marte, Júpiter e Saturno são os planetas masculinos, Vénus e a Lua, são os planetas femininos.22 O Sol, que tem um lugar eminente, porque ele é na nossa natureza o equivalente do Deus que nasce na natureza eterna, possui simultaneamente virtudes masculinas e virtudes femininas.23
  14. A mulher por excelência é a Lua. Ela é a mãe que dá à luz os corpos, e o macho que a fertiliza é Mercúrio.24 No setenário planetário descrito por Boehme, a Lua é o sétimo termo, enquanto que no ciclo da natureza eterna o mesmo lugar é ocupado pelo corpo precioso no qual irradia a Sabedoria. Essa simetria entre a mulher e a Sabedoria, duma natureza para outra, é significativa. A Sabedoria também gera, mas segundo o Espírito Santo. A Sabedoria é a mãe espiritual, a mulher é a mãe carnal. Entre a Sabedoria e a mulher há a mesma diferença que existe entre as duas criações do ser humano, o seu primeiro nascimento num corpo terrestre e o seu nascimento em cima no plano da natureza celeste.
  15. A Lua é o sétimo planeta, porém é ela quem dá à luz os outros seis. Dela procede cada um dos corpos siderais, mas ela também é considerada como sendo o corpo comum do setenário. Ela é a mulher símbolo de todos os corpos que ela dá à luz. Da mesma forma, a sétima entidade do ciclo primordial, apropriada à Sabedoria, é um grande corpo que, tal como o corpo místico de Cristo, contém em si a totalidade daqueles que nele frutificam. No entanto, a analogia não pode fazer-nos esquecer toda a diferença que existe entre as duas naturezas, uma representada pelo céu de baixo, a outra florescendo no céu de cima.
  16. Enquanto que no seu termo, a vida da natureza eterna aparece fixada na sua exaltação suprema, no céu sideral é no ponto mais baixo que se situa o grau final. Quando a natureza eterna se tornou no corpo da Sabedoria, ela atingiu a sua plena medida. Este corpo também dá à luz, mas é por si só a natureza perfeita e acabada. Só ele é por si só, a perfeição do sétimo dia. Pelo contrário, quando é a Lua que encerra o setenário, a perspectiva inverte-se: a mulher é apenas um começo. A Lua é a esposa de todos os espíritos siderais. Cada um quer engendrar segundo a sua qualidade e é nela que todos projetam o seu desejo, porque ela é o útero universal e ela dá à luz.25 A Lua é a mulher que dá à luz. Parafraseando São Paulo,26 Boehme diz que a mulher será salva tornando-se mãe. Ora, a Lua é inferior aos seus filhos, é por isso que nela está sediada a humildade de uma mãe. Para Boehme, cada planeta é um espírito sideral que possui um conhecimento relativo. O da Lua é menor em comparação com todos os outros planetas.27
  17. A sétima entidade do ciclo sideral é o corpo no qual as outras seis se materializam. É neste mesmo corpo que elas são engendradas. Cada planeta é primeiro um espírito. Ora, para Boehme, todo espírito aspira a fixar-se num corpo e nele se engendrar. Cada um dos espíritos siderais dá a imagem da alma que, impelida pelo desejo de existir, faz dum corpo a sua morada a fim de nele se engendrar. O corpo é um útero, ele identifica-se com a mulher que dá à luz. O espírito é o macho que fertiliza. Em Boehme, a alma é masculina antes de ser virgem.
  18. A alma desperta dentro do corpo que ela mesma fecundou e ela forma um corpo novo. No entanto, o fruto que a mulher dá à luz escapa-lhe. A mulher dá à luz e apaga-se atrás dos seus filhos. Junto com a suavidade que, personificada no ciclo primordial, se opõe à fúria do fogo viril, a humildade é a virtude feminina por excelência. Boehme enfatiza isto citando São Paulo.28
  19. Aderindo, à sua maneira, à teoria heliocêntrica, Boehme situa os seis planetas em relação com o Sol, mas de acordo com a dimensão vertical, quer acima, quer abaixo. Os planetas superiores, Marte, Júpiter, Saturno, têm qualidades viris. Os outros, Vénus, Mercúrio segundo uma das suas duas faces, e a Lua são femininos.29 "O que está em baixo é o corpo ou a mulher (a esposa) daquilo que está em cima",30 especifica Boehme.
  20. Os três planetas superiores são da natureza do fogo, os outros três são da natureza da água. O fogo é viril, a água é feminina. A alma viril é um fogo, os corpos surgem da água. Os corpos são água coagulada, a própria pedra é água endurecida.31
  21. A terra oferece a imagem da liquidez fixada. Outro símbolo feminino, a terra é filha da água.32 A terra também representa os corpos que são todos formados de água. É por isso que a terra é colocada concomitantemente com a Lua no sétimo grau do setenário.
  22. A terra também é a mãe. Se a água produz a terra, esta, por sua vez, dá à luz. A nossa terra produz frutos que são à imagem do terceiro princípio: são alternadamente bons e maus. No entanto, passa-se com ela o mesmo que com a Lua, cada fruto do seu corpo é outro corpo que é melhor do que ela. Por mais relativa que seja a perfeição no nosso mundo, porque aí nunca reina o bem sem o mal, a mulher que dá à luz aparece sempre inferior ao fruto do seu corpo.
  23. Enquanto a figura feminina da Lua é o símbolo da natureza inferior, a terra também aparece no plano da natureza celeste. Lá, também, ela está situada no sétimo grau. Ela não é outra coisa senão o elemento único que corresponde aos quatro elementos do nosso mundo.33 Ela é a terra paradisíaca que era a carne de Adão. Ela é o céu dos anjos. Na natureza eterna, o céu e a terra são um, enquanto que no mundo aqui em baixo são a imagem da dualidade dos sexos.34 O elemento único é o símbolo da unidade entre o céu e a terra. Ele é o material precioso da terra celeste que é transparente como cristal.35 Ele é a carne do ser humano virginal, a de Cristo.36 O limus paradisíaco é a sua quintessência, foi a partir dele que o ser humano virginal foi amassado, é por isso que ele é a imagem perfeita de Deus.37
  24. Ao nível da natureza eterna, a terra é, portanto, o elemento precioso que transcende a dualidade. A terra não é mais a mulher. Se ela ainda é mãe, é de acordo com a Sabedoria cujo elemento sagrado é o corpo.38
  25. Retornemos à dualidade do homem e da mulher de acordo com o terceiro princípio. A qualidade feminina é, antes de tudo, a virtude da água. Ora, separada do fogo, a água não é nada. Sem a suavidade da água, o fogo é apenas fúria destrutiva. Sozinho, o fogo é um poder de morte, mas em si própria, a água é apenas uma vida sem força,39 um semblante de vida. É por isso que o fogo e a água se desejam mutuamente. Mas aqui em baixo o desejo é doloroso, traduz o drama da separação dos sexos. A água e o fogo opõem-se e desejam-se um ao outro porque na natureza profunda eles não estão separados. A separação entre os quatro elementos é a fatalidade da nossa natureza terrestre.
  26. A dualidade do fogo viril e da água feminina é a da alma e do corpo. A água coagula e torna-se num corpo. A alma é o fogo que anima o corpo. A alma é o fogo que sobe ou procura subir. Esse fogo é a expressão do movimento. Simbolizada pelo fogo viril, a vida é um movimento ascendente. Quanto mais esse movimento é contrariado, mais violento é o fogo. Quanto ao corpo, ele é pesado. Quando não é mais nutrido pelo fogo da alma, ele é a vida que retrocede, ele oferece a aparência da morte. Certo, para Boehme, a morte nunca é total, porque sob a sua aparência, a vida é sempre latente.40 No entanto, há uma vida que é como uma morte, é aquela cuja imagem o corpo dá quando ele é o símbolo dos quatro elementos separados segundo o terceiro princípio. É pensando neste corpo que está como que morto que Boehme fala da inanição da água. Sem o fogo, a água é apenas um corpo inanimado.
  27. "O que está em baixo é o corpo ou a esposa do que está em cima",41 diz Boehme. Se assim se pode dizer, o corpo é a esposa da alma, fogo viril. A terra é o corpo. A terra é a esposa, enquanto que o céu, que encarna os espíritos siderais, o astrum, a alma do mundo, é o marido. A terra é a mulher, a alma do mundo é o fogo viril que penetra. Lembremos que com Boehme a alma do mundo não deve ser absolutamente confundida com a Sabedoria, ela é o espírito deste mundo, o spiritus mundi.
  28. O fogo viril não é apenas fecundante. Em si mesmo, o princípio masculino é o fogo consumidor. Ele é destruidor, é um veneno. As trevas, que acima de tudo não devem ser consideradas como uma simples ausência de luz, são esse fogo terrível. As trevas são o poder masculino que é o fogo do furacão. Em Boehme, as trevas não são femininas.
  29. O macho é antes de tudo um fogo furioso que procura engendrar para a sua própria realização. Para isso, ele precisa dum corpo. E é na suavidade da água que o ser se forma. Só a suavidade dá substância, enquanto que o fogo violento se devora a si próprio perpetuamente. É a água feminina que se torna na substância dos corpos. É dessa substância que a força masculina se alimentará quando deixar de se devorar no seu próprio abismo. Ela era apenas um apetite insatisfeito, ela será um desejo realizado e criativo. A força alimenta-se da suavidade que a tempera e lhe dá consistência. Da mesma forma, o óleo nutre o fogo e o faz florescer na chama clara. A água benéfica é um óleo, a sua suavidade substancial é uma untuosidade.
  30. O poder masculino é uma sombra que procura encarnar-se. O propósito de toda vida é encarnar-se num corpo que será a sua imagem. São as qualidades femininas que criam a substância (Wesenheit) desse corpo. Sem o fogo viril que a anima, a substância seria uma matéria inerte. Sem as virtudes femininas, o homem seria apenas uma sombra procurando desesperadamente encarnar-se.
  31. Antes de se fixar num corpo, a força masculina é devastadora. Ela é a vida que se destrói a si própria até que a sua violência seja aplacada. Ela é a fúria do desejo. Toda a vida é, na sua raiz, um apetite terrível. A vida é toda desejo. O fogo devorador, que evocamos aqui, é o desejo com o qual toda a natureza arde. A natureza só floresce quando esse desejo fica satisfeito. Então, em vez de encerrar o ser em si próprio, abre-o ao infinito. A força masculina não é mais um apetite glutão, é a vida que se dá.
  32. Antes de ser capaz de se comunicar, a vida é apenas um fogo voraz. É Marte quem personifica esse ardor na atmosfera de pavor que reina durante a fase tenebrosa do setenário primordial. Marte é o poder que acende o fogo universal,42 mas ele é, ele próprio, esse fogo. Marte é a fúria da vida quando ela brota.
  33. O diabo não será nem homem nem mulher, no entanto Marte, que representa o poder masculino, aparece como o arquétipo do demónio.43 Para Boehme, o inferno está na fonte de toda a vida. Ora, o fogo da Geena provem de um fogo original que é de natureza viril. É um fogo escuro. Para que brilhe, para que a vida floresça na luz, Marte terá que ser suavizado por Vénus.44 Enquanto estiver furioso, ele desejará aquela suavidade que o livrará da sua própria fúria. É pelo efeito desse desejo que a suavidade de Vénus se tornará a substância dum corpo do qual Marte será a alma e no qual brilhará o seu fogo.45 Marte cria o corpo de Vénus para florescer nele. A mulher nasce do desejo do homem. Buscando-se a si próprio, o poder viril volta o seu desejo para o seu contrário, e é então que ele se encontra.
  34. Antes de se realizar num corpo feminino, o princípio masculino é um poder tenebroso. A mulher é identificada com a matéria mais ou menos opaca desse corpo, no entanto a verdadeira escuridão, a da vida na sua raiz, é atribuída ao homem. A mulher é o corpo que dá à luz, ela não é a sombra tal como Carl Gustav Jung a verá. Ela não representa as trevas que estão na raiz da natureza e a que Boehme chama de primeiro princípio.
  35. O que está em cima é masculino; o que está em baixo é feminino. No entanto, em Boehme, as alturas são também profundezas. O céu recobre o abismo de onde brota a vida na sua escuridão primeira. É lá que as almas são torturadas pelo desejo de se encarnarem. Elas são vítimas de sofrimentos indescritíveis que estão presentes, ao mesmo tempo que Marte, no terceiro grau da natureza eterna, sob o nome de Angústia, que é a raiz do fogo.46
  36. O princípio masculino é o espírito na sua primeira manifestação. Existem, em Boehme, duas maneiras de considerar o espírito: quer ao nível da inteligência clara, quer, pelo contrário, no estado de vida bruta. Mas essas duas formas são apenas uma, porque o espírito é sempre o sopro vital. O espírito é a vida em todos os seus níveis. Quando brota, a vida é um sopro de fogo que se chama indiferentemente espírito, alma ou natureza. Este fogo é o poder viril.
  37. O espírito masculino que surge como primeira manifestação da vida é uma alma sem corpo. É uma natureza sem matéria, sem substância (Wesen), e que aspira a tornar-se substancial. É uma natureza que ainda não é e que aspira a ser. Na sua origem, a natureza é um desejo, é o desejo de ser. Com a extrema violência que o caracteriza, o princípio viril representa todo o desejo duma natureza que é uma alma em busca dum corpo. Essa alma primitiva é um sopro e ela procura um corpo que será a forma na qual ela pode fixar-se. O sopro "coagula-se", é assim que nasce o corpo, quer o dum mundo, quer o dum ser particular.47 Mas enquanto o sopro não se fixar na substância à qual ele se identificará penetrando-a sempre e animando-a a partir de dentro, ele não passará de um turbilhão furioso. É assim que encarnará a alma primitiva.
  38. A natureza primordial é o fogo viril. Esse fogo vai fixar-se na água que é o símbolo dos valores femininos. A água é uma substância que é o arquétipo de todos os corpos. A água é um óleo graças ao qual o fogo vai realizar-se. O óleo será o corpo do fogo. Ela será a substância na qual o fogo irradiará. O fogo então será uma verdadeira chama, enquanto que antes ele era o fogo escuro, aquele que não queima, propriamente falando,48 um fogo devorador que é sufocado pelo excesso do seu desejo, um fogo que não se chega a acender. Para ser uma verdadeira chama, o fogo precisa da untuosidade da água - o que é próprio de Vénus.49
  39. O fogo e a água são contrários. Eles opõem-se e a água prevalece sobre o fogo, a suavidade sobre a força. O desejo de fogo cai, vencido por um outro desejo, aquele que ele fez nascer dentro da água. Os contrários opõem-se e desejam-se um ao outro. O fogo produz, pelo seu desejo, a untuosidade graças à qual o seu ardor será temperado. A água vencerá a fúria do fogo, no entanto a água procede do fogo. É assim que a mulher nasce do homem.
  40. Boehme cita São Paulo: “Pois foi Adão quem foi formado primeiro, Eva depois”.50 É certo que há uma ambiguidade neste ponto. Quando nasce, Adão não é nem macho nem fêmea. Boehme também diz que no seu primeiro estado, Adão é homem e mulher. Nesse nível, não parece que o homem tenha precedido a mulher. Depois, quando perde o seu corpo glorioso, Adão torna-se efetivamente homem e mulher. Mas o aparecimento dos dois corpos não é simultâneo? Tudo sugere que nesse momento, Adão e Eva apareceram simultaneamente, ambos sucedendo ao Adão glorioso. Mas quando Boehme afirma que Eva veio depois de Adão, é sem dúvida no Adão glorioso que ele está a pensar, e não no Adão terrestre. No seu espírito, o Adão celeste, por mais virgem que seja, transcendendo os sexos ou unindo-os, seria apesar de tudo o ser masculino do qual a mulher foi tirada. O ser humano virginal seria do sexo masculino. De fato, é isso que diz a expressão virgem viril (männliche Jungfrau). O ser humano virginal é homem e mulher, mas não é homem nem mulher, no entanto é macho.
  41. A mulher vem do homem como a água procede do fogo. No entanto, é a mulher que dará à luz o homem. Sem a mulher, o homem seria apenas um fogo como o da Geena. Se o fogo do ciclo da natureza eterna se torna num fogo verdadeiro, isto é, numa chama clara, é pela virtude da água. O fogo produz a água para se engendrar nela. Da mesma forma, o homem preexiste à mulher, porém ele nasce por sua vez do seio dela. O homem só se define como princípio viril em relação à mulher que ele deseja e cujo desejo ele também provoca nela, para se engendrar na sua carne.
  42. O fogo escuro deseja a luz. O desejo transforma-nos na imagem do seu objeto. O fogo torna-se na luz. O agente dessa transmutação é a tintura, espécie de espírito guia que atua em todas as coisas e que leva cada uma à sua perfeição segundo o seu modo de ser.51 Ora, a tintura, no casal terrestre, é mais frequentemente referida ao homem. Quanto à mulher, ela é o útero no qual opera a tintura. É assim que a água é o útero no qual ocorre a transmutação do fogo em luz. A mulher é o útero no qual a vida realmente nasce. A vida brota, mas para nascer válidamente, ela tem que ser mudada.
  43. No casal terrestre, o fogo do homem remonta ao primeiro princípio do setenário primordial. O primeiro princípio é em si um poder viril apenas em relação aos valores femininos, graças aos quais o segundo princípio se vai realizar. Na perspectiva dessa realização, as trevas são como o inferno, mas com a promessa da luz. Caso contrário, elas serão apenas o inferno, como para o anjo caído. Para este último, as trevas não são mais o fogo viril. Identificado com as trevas, o demónio não tem sexo. O demónio não é nem homem nem mulher. Certo, não é pela mesma razão que as criaturas celestes, é simplesmente porque ele não tem corpo,52 é essa a sua maldição.
  44. Assim, a natureza eterna realiza-se a si própria segundo a alternância de valores viris e femininos. Há uma relação necessária entre esses valores. Sem Vénus, representada no quinto grau, o fogo viril de Marte seria estéril. Por outro lado, se o útero da água não fosse penetrado pelo fogo, ela seria apenas uma substância inanimada. Da mesma forma, na terra, sem o homem, a mulher teria apenas uma aparência de vida. É por isso que o desejo da mulher responde ao do homem.
  45. É, portanto, no casal humano que os contrários, o fogo e a água, se encontram no nível do terceiro princípio. Mas é suficiente que um homem e uma mulher se unam para que a totalidade perdida seja encontrada? Parafraseando a Génesis e São Paulo,53 Boehme afirma que o homem e a mulher unidos no casamento são uma só carne. No entanto, o casamento entre o homem e a mulher, de acordo com a nossa condição terrestre, é apenas o reflexo doutra união que é a única que é verdadeira porque é indissolúvel: aquela entre a alma e a Sabedoria.
  46. Quando, na terra, um homem e uma mulher se unem, a vida é gerada no corpo que é o fruto da sua união. No entanto, esse corpo é apenas uma habitação provisória. Não é o corpo verdadeiro, aquele que será indestrutível. A vida que daí nasce também não é a verdadeira vida, a qual será imperecível. A criança que assim vê a luz do dia é, na sua própria carne, a imagem da dualidade universal, porque é menina ou menino. Certo, nessa carne a vida encarna-se segundo a dinâmica que a faz passar do nada ao ser. Os contrários encontraram-se e produziram um fruto. No entanto, o acordo entre os contrários é efémero quando realizado na terra, nesse mundo chamado terceiro princípio.
  47. A conjunção dos contrários não ocorre apenas no casamento humano. Ela é a condição necessária para todo o crescimento, tanto o duma árvore quanto o dos metais. Ora, a árvore morre, assim como os metais, se forem apenas a imagem do terceiro princípio. A união dos contrários não pode ser duradoura dentro dos limites deste último, ela apenas produz uma aparência de unidade que não é uma totalidade. A única unidade verdadeira é aquela que se realiza na forma de uma totalidade indestrutível. É aquela que sobrevive à morte terrestre. O casal humano é incapaz de conseguir isso. É por isso que Boehme não idealiza o amor entre o homem e a mulher. Apesar de tudo, ele aceita o casamento, mas para ele a união carnal continua a ser uma abominação.54 Boehme ousa dizer que a criança nascida do homem e da mulher é um monstro.55
  48. É verdade que essa proposição visa apenas o ser terrestre, porque toda a criança nascida do casal humano tem uma vocação celeste. No entanto, segundo o seu nascimento terrestre, ela é apenas a imagem do terceiro princípio personificado pelo spiritus mundi, o príncipe deste mundo que tem duas faces. Por um lado, ele é o agente da misericórdia divina, porque Deus criou o nosso mundo para aí agir segundo o amor. Mas, por outro lado, é por meio dele que a cólera divina se manifesta. É ele que pune Adão e Eva quando a queda se concretiza.56 Todas as coisas terrestres são à imagem desse spiritus mundi: em cada uma delas os contrários se chocam.57 Em nenhuma criatura os contrários estarão perfeitamente unidos enquanto a sua condição terrestre não tiver sido abolida. Para isso, ela tem que nascer de novo, o que pressupõe que ela se renunciou totalmente, que ela abandonou toda a vontade própria.
  49. O ser humano terrestre é a imagem do spiritus mundi e na pessoa deste, a imagem de Deus aparece quebrada. Segundo a sua imagem perfeita, Deus é apenas amor. No entanto, Deus manifesta-se neste mundo não apenas segundo a sua misericórdia, mas também segundo a sua cólera. O grande problema da teosofia de Boehme é o mesmo que têm os cabalistas: como conciliar os dois aspectos da manifestação divina, o amor, a clemência por um lado, a justiça, o rigor, a cólera por outro? A dualidade dos sexos decorre dessa antinomia primária.
  50. A imagem de Deus foi quebrada. Tem que ser restaurada. É o próprio ser humano que será essa imagem, não apenas metaforicamente, mas na sua carne. É no ser humano que a totalidade deverá ser restabelecida. Mas para isso o ser humano terá que deixar a sua condição terrestre. O ser humano terá que mudar de natureza. Terá que passar de um mundo para outro. Ele pode, essa é toda a sua superioridade sobre os anjos que, uma vez caídos, não podem mais retornar ao princípio do qual foram afastados.
  51. De acordo com a sua natureza terrestre, o ser humano é incapaz de aceder à verdadeira totalidade. Ora, o ser humano não é apenas um ser terrestre, segundo o terceiro princípio. De acordo com todas as suas potencialidades, o ser humano abrange os três princípios. Mesmo caído, o ser humano tem em si o segundo princípio que é o do amor e da luz. Adão perdeu o seu corpo de luz, mas a sua posteridade o recuperará, e com ele a verdadeira totalidade que, não esqueçamos, é para Boehme unicamente a da luz e do amor. Como? É isso que vamos ver agora.

Notas

  1. Aurora, c.11,72. [  ]
  2. De electione gratiae, c.5,15-16; Epistolae theosophicae, ep.47,11; Christosophia VI (Theoscopia), c.3,14. [  ]
  3. Mysterium Magnum, c.19,3-4; ver c.18,13. [  ]
  4. De triplici vita hominis, c.9,104. [  ]
  5. Ibid., c.9,91. [  ]
  6. De signarura rerum, c.9,24. [  ]
  7. lbid. [  ]
  8. Mysterium Magnum, c.41,32; 1 Timóteo 2,15. [  ]
  9. Aurora, c.16,16. [  ]
  10. De incarnatione verbi I, c.7,14-15. [  ]
  11. De triplici vita hominis, c.9,104. [  ]
  12. Mysterium Magnum, c.10,54. [  ]
  13. De triplici vita hominis, c.13,19; De tribus principiis, c.17,9. [  ]
  14. De triplici vita hominis, c.1,6. [  ]
  15. De tribus pricipiis, c.22,71; c.23,24. [  ]
  16. Clavis, 110. [  ]
  17. Psychologia vera, c.40,2. [  ]
  18. Anti-Stiefelius, 147. [  ]
  19. lbid. [  ]
  20. Ibid., c.22,26 e 72. [  ]
  21. De triplici vita hominis, c.9,44. [  ]
  22. Ibid., c.6,62. [  ]
  23. Ver em cima, n. 30. [  ]
  24. De triplici vita hominis, c.9,78. [  ]
  25. De signarura rerum, c.11,32. [  ]
  26. Aurora, c.26,34. [  ]
  27. De signarura rerum, c.4,37. [  ]
  28. Ibid., c.2,24. [  ]
  29. Mysterium Magnum, c.61,45. [  ]
  30. De incarnatione verbi II, c.5,1; De signatura rerum, c.2,13. [  ]
  31. Mysrerium Magnum, c.4,14-15; c.10,22-23 e 28. [  ]
  32. 1 Timóteo 2,13. [  ]
  33. De tribus principiis, c.12,22; Quaestiones theosophicae, qu.7,15; Clavis, 46; Mysterium Magnum, c.10,23. [  ]
  34. De triplici vita hominis, c.2,58; c.8,22. [  ]
  35. Génesis 2,24; Efésios 5,3; De incarnatione verbi I, c.6,11. [  ]
  36. Mysterium Magnum, c.76,15; De tribus principiis, c.15,35. [  ]
  37. Mysterium Magnum, c.23,39. [  ]
  38. De tribus principiis, c.10,25. [  ]
  39. Aurora, c.1,2; c.2,5. [  ]
  40. De electione gratiae, c.8,98; De triplici vita hominis, c.8,46. [  ]
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