O Ser Humano Virginal - 2. O Primeiro e Segundo Princípios

  1. Entrando no detalhe da nossa análise, devemos logicamente falar primeiro do Adão primordial, porque é a ele que se aplica primeiro a fórmula do ser humano virginal. É ele quem representa o ser humano na sua plenitude original, antes que, como resultado da queda, Adão e Eva não fossem cada um mais do que a metade da criatura humana. No entanto, o Adão primordial não é a primeira entidade a quem Boehme atribui a forma humana. Ele é a manifestação do Ser Humano que existiu desde toda a eternidade nos pensamentos de Deus, que segundo o apóstolo foi eleito desde antes da criação do mundo.9 Cristo será a segunda manifestação desse Ser Humano eterno. A forma humana, símbolo da plenitude perfeita, preexiste ao primeiro ser humano. Ela é anterior ao tempo do nosso mundo. Ela é mesmo posterior a ele, porque quando ela se manifestar plenamente, o fim da nossa natureza estará consumada.
  2. A aparição do Ser Humano eterno coincide com a da Sabedoria, os dois são apenas um. A Sabedoria é o Deus manifestado desde a primeira origem sob a aparência da forma humana.10 Para Boehme, Deus não poderia manifestar-se doutra forma senão assumindo um corpo que só poderia ser a forma humana para nós. Sem estar fixado num corpo, o Infinito nos escaparia completamente, a Divindade permaneceria o Absoluto desconhecido para a criatura e que não teria nenhuma relação com ela. E é a Sabedoria que representa eternamente a forma humana segundo a sua plenitude perfeita.
  3. A Sabedoria é a imagem imaculada da Divindade, a primeira e a última. O Ser Humano eterno é a imagem da Sabedoria e, portanto, de Deus. No sentido mais elevado, a palavra imagem, em Boehme, não significa apenas um simples reflexo. A imagem da perfeição divina é essa perfeição tornada visível, objetivada numa forma, num corpo. Para Boehme, a perfeição não é uma ideia abstrata. Se ela é verdadeira, produz a sua imagem que não se oferece à vista do olho carnal, mas à contemplação dum olho que é a quintessência dos sentidos espirituais. A imagem, neste sentido, é a perfeição do ser tornado visível, encarnado. A perfeição completa está nessa visibilidade. É por isso que o próprio Deus, que é a perfeição suprema, visa apenas uma coisa: tornar-se visível. A teofania é o fim de todas as obras divinas.
  4. Em si própria, a Divindade de Boehme é o Absoluto que ignora os mundos. No entanto, esta Divindade sai dela própria para se manifestar. O seu primeiro ato é então produzir, na sua Sabedoria, a sua própria imagem, que é também a das suas obras por vir. Essa imagem primordial é uma forma. Ela é um corpo sublime que é o do Ser Humano eterno. É por referência a esse corpo que o ser humano criado é considerado a imagem de Deus. O Adão primordial não se assemelha apenas a esta forma original. Ele assumiu um corpo que se identifica com ela por participação. A imagem não é apenas a semelhança, ela é a realidade divina na medida em que Deus se manifesta. Deus incorpora-se substancialmente na imagem que Ele produz a partir d'Ele mesmo, está aí todo o sentido da economia divina. Em alemão, a palavra Bild significa simultaneamente imagem e corpo, forma.
  5. A imagem que representará o corpo do Adão primordial, símbolo da totalidade humana, está, portanto, presente desde o momento em que o Absoluto emerge da sua infinita solidão para produzir os mundos, para se manifestar neles. Esse momento é aquele em que a Sabedoria nasce, assumindo a forma humana.
  6. A imagem inicial é o espelho de Deus tal qual ele é eternamente. Mas essa visibilidade de Deus é também a de todas as obras que estão por vir. Assim, nessa primeira origem onde nasce a Sabedoria, a imagem contém a plenitude de Deus e das suas obras, que já é visível, mas no entanto a manifestação divina está apenas no início. Este é o paradoxo do Deus de Boehme: Deus existe desde toda a eternidade, mas também, na medida em que se faz visível, Deus realiza-se. Da mesma forma, a sua imagem representada pela Sabedoria está presente desde o início, no entanto Boehme mostra-nos ela a realizar-se. De fato, o Deus de Boehme é sempre o Deus que nasce dentro da alma, é por isso que Ele aparece a devir, apesar de na pura eternidade não haver movimento.
  7. Toda a finalidade da economia divina está na plena manifestação da imagem. Ela realiza-se em três tempos, primeiro no céu dos anjos, depois no corpo glorioso de Adão, finalmente na pessoa de Cristo e dos seus irmãos. Nas duas primeiras vezes, a imagem manifesta-se, mas depois ofusca-se. Na terceira vez, é o coroamento das obras divinas na perspectiva da consumação do tempo: a Glória de Deus resplandecerá plenamente.
  8. Assim, são antes de tudo os anjos que, habitados pela Sabedoria, se identificam com ela para manifestarem o esplendor de Deus. O céu sublime, que é o macrocosmo dos anjos, é o templo dentro do qual resplandece a Glória de Deus.
  9. Os anjos têm a forma humana.11 O mais belo deles, que receberá o nome de Lúcifer, representa-a supremamente. O seu corpo, habitado pela Sabedoria, é a imagem na qual se encerra a plenitude divina. O corpo de Lúcifer é da mesma natureza celeste que a do Adão primordial e, portanto, ele também tem a forma humana. Ora, Boehme não diz de Lúcifer que, segundo a plenitude do seu corpo, ele era homem e mulher ou nem homem nem mulher. A fórmula só se aplica a Adão. Vamos perguntar-nos por quê.
  10. Os anjos não são sexuados e, no entanto, a forma humana que eles revestiram aparece no final dum processo que opôs virtudes masculinas e qualidades femininas para em seguida uni-las. Mais uma vez, esta forma humana foi dada antecipadamente desde o nascimento da Sabedoria, porém era preciso que ela se realizasse. Foi só depois disso que os anjos a conseguiram revestir. A carne de que são feitos os corpos dos anjos é fruto duma evolução durante a qual os contrários que prefiguram os sexos se afrontaram e se uniram. A perfeição do corpo de Lúcifer está nessa união entre os contrários. Lúcifer destrói-a e então a Sabedoria abandona-o, ao mesmo tempo ele perde o seu corpo glorioso.
  11. Recordemos brevemente que a criação dos anjos se situa no final duma emanação primordial que é um ciclo setenário. O mundo dos anjos, que é o primeiro céu, é o produto dessa emanação. É a natureza dita eterna, aquela que precede a nossa.
  12. O ciclo setenário faz-se suceder pelas “formas”, também chamadas de “espíritos”, e que na realidade são qualidades sensíveis concebidas como entidades ativas, como arquétipos. Umas são tenebrosas, estão relacionadas com o fogo escuro que é um fogo devorador, símbolo da cólera divina e arquétipo do fogo da Geena. As outras contribuem para o nascimento da luz. O ciclo primordial é a grande opus (obra) divina graças à qual se realiza a transmutação do fogo em luz. Os valores positivos estão relacionados com a luz que é ela mesma identificada com o amor.
  13. Deus produz a natureza eterna com vista à Sua manifestação. Mas, essa natureza, antes de ser radiante, é um fogo tenebroso. Ela é um fogo como a alma. A natureza primordial é uma alma universal que é a mãe de todas as almas por vir. Deus nasce dentro dessa grande alma tal como Ele nascerá dentro das almas individuais. Deus nasce sob o aspecto da luz que brota dentro da alma. Mas antes desse brotar, a alma é um fogo tenebroso.
  14. O fogo é um poder viril. No seu fundo escuro, a alma é masculina. O fogo devorador é simbolizado por Marte. É a expressão da cólera divina. Quando o fogo se transformou em luz, é Vénus que aparece. Vénus é o amor. Vénus é um símbolo feminino por excelência, assim como a suavidade da água que venceu a cólera do fogo e que o faz irradiar, porque para Boehme, a água não extingue o fogo, é o óleo que o bebe e que dá a luz.
  15. Quando o ciclo se completa, o fogo brilha na água e ele é a luz. Marte e Vénus estão unidos. O fruto da sua união é o corpo de luz representado no sétimo grau. Nesse corpo, a Sabedoria irradia. Ele é a plenitude do ciclo: todas as virtudes estão unidas nele em perfeita harmonia, enquanto que antes elas se opunham. Este pleroma simboliza a reconciliação dos contrários na natureza eterna que se tornou no corpo de Deus representado pela sua Sabedoria.12
  16. O corpo, que é fruto da emanação primordial, não é uma forma abstrata. Ele é uma substância, uma carne. Ele será a carne de Cristo no seu corpo celeste. Ele é antes de tudo a carne dos anjos ao mesmo tempo que a substância do céu primordial que representa todas as criaturas angélicas. Essa matéria preciosa, que está na origem de todos os corpos, chama-se o elemento, no singular.13 Nos corpos celestes, ela será indivisível, a sua unidade será a sua integridade perfeita. Nos corpos terrestres, o elemento único será ocultado sob o aspecto dos quatro elementos.14 Esta quaternidade não será um símbolo de totalidade nem de unidade, pelo contrário, será o efeito de uma rotura e o sinal duma perfeição menor.
  17. O elemento único, fruto da emanação setenária, é o corpo da Sabedoria que, permanecendo perfeitamente transcendente, habita nele. Ele é a vestimenta de luz graças à qual Deus se manifesta a partir do seu absoluto solitário. É a partir desse elemento que o corpo de Lúcifer foi formado.
  18. Assim, o corpo do anjo habitado pela Sabedoria é o símbolo perfeito da união dos contrários. Esta unidade não se dá de antemão, pelo menos dentro dos limites do setenário, ela é precedida por um confronto entre poderes, dos quais uns são arquétipos de virilidade tenebrosa, os outros das virtudes femininas. Seria de esperar, portanto, que Lúcifer fosse considerado por Boehme como sendo o primeiro ser representando a totalidade do homem e da mulher. No entanto, não é assim. Porquê?
  19. Certo, o homem, propriamente falando, ainda não foi criado. Apenas o ser humano poderá ser considerado como homem e mulher. No entanto, os anjos já assumiram a forma humana, eles já são a manifestação do Ser Humano figurada desde toda a eternidade nos pensamentos de Deus. Não é a Sabedoria, que habita nos seus corpos celestes, a imagem perfeita do ser humano ao mesmo tempo que a de Deus? E, é através do seu corpo de anjo que Adão representará a perfeita consonância que será percebida como se o homem e a mulher estivessem unidos numa única pessoa. Então, porque é que essa harmonia não é expressa da mesma forma com respeito a Lúcifer, cujo sucessor será Adão, segundo Boehme, estabelecido sobre o mesmo trono?15
  20. A razão dessa diferença é que a totalidade, representada por Adão no momento em que foi criado, é definida de forma diferente da dos anjos: ela tem uma compreensão maior. Certo, nós estamos no meio de um paradoxo, porque estamos a falar duma totalidade incompleta. No entanto, quando lemos Boehme, devemos saber que as noções variam de acordo com os diferentes planos da manifestação divina. Do anjo ao ser humano, esta vai-se ampliando, alargando-se, sendo a Sabedoria a única constante que, ao mesmo tempo, a transcende e contém a totalidade dinâmica dela. A Sabedoria é, por um lado, o Ser perfeito e invariável. Por outro lado, ela é o espelho imaculado da atividade divina, isto é, das obras graças às quais Deus se exterioriza. A Sabedoria é o olho que vê essas obras desde o início, antes da criação do nosso mundo. E esse olho é o espelho que contém a totalidade das coisas vistas. É nele que está o mysterium magnum que se explica à medida que se realizam as obras divinas.16 Essa elucidação dá-se na emanação primordial, depois na criação nos seus diferentes níveis.
  21. O Ser Humano, que é a figura da Sabedoria, não é apenas um anjo. A forma humana não é apenas antecipada no corpo dos anjos, é no ser humano que ela se manifestará plenamente. Mas, o ser humano não será apenas um anjo segundo o corpo glorioso de Adão. O ser humano também será o ser humano terrestre. A verdadeira totalidade humana não aparece até que Adão seja criado, pois ele é tanto um ser humano celeste quanto um ser humano terrestre. Adão é criado com dois corpos, um dos quais é o do anjo e o outro, pelo menos virtualmente, é o do ser humano terrestre.
  22. O corpo terrestre está inicialmente oculto, porque o brilho do corpo de luz o impede de ser visível. Ele está como que latente. Ele aparecerá quando Adão perder o seu corpo precioso. Ele vai ser atualizado, objetivado. Mas, ele será necessariamente duplo, ele será o de um homem e de uma mulher. O corpo terrestre, com as partes vergonhosas que o caracterizam, não se concebe senão segundo a dualidade dos sexos. Se Adão era andrógino quando foi criado, é de acordo com o seu corpo terrestre. Mas, a partir do momento em que esse corpo é objetivado, é na forma de dois corpos separados. O corpo terrestre de Adão só tem realidade quando se manifesta. Então, os sexos tornam-se, eles próprios, reais e são separados. A característica dos sexos é a de se enfrentarem. Nós não os imaginamos reunidos num único corpo terrestre senão no início, quando esse corpo, embora efetivamente já tenha sido criado, ainda é apenas virtual. Para Boehme, uma coisa só se torna real quando ela se manifesta, ou seja, quando é percebida por um sujeito cognoscente. Assim, o corpo terrestre de Adão é atualizado no momento em que ele o descobre. Nesse momento, ele é a nudez de dois corpos separados.
  23. O corpo terrestre não pode ser concebido sem a dualidade dos sexos. No entanto, essa dualidade só se manifesta se os sexos parecerem separados. É por isso que, uma vez descoberto, o corpo terrestre de Adão é necessariamente o de um homem e de uma mulher que são duas metades distintas.
  24. Somente o corpo terrestre objetiva a dualidade dos sexos. Ora, se os sexos não apareciam separados, como poderíamos imaginá-los unidos? Se dizemos que segundo o seu corpo virginal, Adão era homem e mulher, é por uma projeção inversa: num plano onde os sexos ainda não existiam, raciocinamos como se a sua separação tivesse cessado. Boehme não se deixa enganar, pois quando afirma que o Adão celeste era homem e mulher, corrige imediatamente: o ser humano celeste não era na realidade nem homem nem mulher.
  25. No entanto, aquilo a que chamamos de projeção inversa termina no corpo celeste de Adão, ela não se aplica a Lúcifer. Nós nos perguntamos porquê e acreditamos que podemos responder. Adão é criado tanto ser humano celeste quanto ser humano terrestre. No entanto, no princípio, apenas o ser humano celeste se manifesta. Depois, Adão torna-se verdadeiramente no ser humano terrestre que ele era de acordo com o seu nascimento. Então, ele é apenas a metade masculina desse ser terrestre, face à outra metade feminina. A separação dos sexos é o fato da nova condição do ser humano. Infere-se que na sua primeira condição, a do ser humano celeste, ela não existia. Ora Lúcifer, uma vez caído, não é nem macho nem fêmea, ele é o puro nada. Como dizer então que antes ele era um e outro, ou nenhum dos dois? Uma vez consumado o seu crime, Lúcifer perde o seu corpo de luz. A partir desse momento, ele nunca mais terá um corpo. O anjo caído desposará formas, sob a aparência dum corpo animal ele será masculino ou feminino, mas será apenas um simulacro. A maldição de Lúcifer é a de não se poder mais encarnar.
  26. Os sexos estão prefigurados na natureza primordial da qual o corpo de Lúcifer é a quintessência, porém eles só serão objetivados no nosso mundo. Os arquétipos que operavam no setenário da primeira natureza representavam poderes viris por um lado e virtudes femininas por outro. Ora, é apenas no nível do nosso mundo que eles produzirão o homem e a mulher. Somente o corpo terrestre de Adão, ao dividir-se, objetiva o homem e a mulher.
  27. Falamos de objetivação e de atualização. Esta não é a linguagem de Boehme, mas o comentador da sua obra não pode deixar de recorrer a conceitos que ele próprio não tinha. Podemos dizer que para Boehme, a manifestação divina se apresenta como uma série de objetivações em diferentes planos.
  28. O Deus de Boehme manifesta-se nas suas obras. Aquilo que percebemos da realidade divina está inteiramente nessa manifestação. Nós só conhecemos Deus pelas suas obras. Ora, estas não se limitam à criação do nosso mundo. Eles começam muito antes. Dar-nos-ão permissão de regressar ao desdobramento da manifestação divina.
  29. Deus manifesta-se na emanação primordial que é o primeiro começo das suas obras, depois ao criar em diferentes níveis e de maneira sucessiva primeiro o mundo celeste, o dos anjos, depois o nosso mundo e o ser humano, finalmente no modo do que chamamos de segunda criação, aquela que se realiza segundo o espírito e na perspectiva da consumação do tempo.
  30. Ao criar, Deus objetiva, Deus faz aparecer formas que estavam contidas desde o início no espelho da Sabedoria. Deus revela-se objetivando as suas obras, manifestando-as. A Sabedoria vê essas obras e representa-as desde o seu próprio nascimento. No entanto, elas manifestam-se de maneira sucessiva, de modo que antes de serem objetivadas, estão como se estivessem em projeto.
  31. Qual é a primeira objetivação de Deus revelando-se nas suas obras? É o jorrar da luz no coração da natureza eterna. Deus objetiva-se através do corpo de luz que é representado no sétimo grau do setenário primordial. Esse corpo é o céu dos anjos, isto é, todos os seus corpos unidos num só. Assim, o termo da emanação primordial coincide com a primeira criação, a dos anjos. É no céu dos anjos que Deus se manifesta pela primeira vez sob o aspecto da luz.
  32. A primeira fase do ciclo original é tenebrosa. A noite que então reina ainda não é a do reino de Satanás. Certo, a escuridão primordial é um fogo que é o arquétipo do fogo da Geena. No entanto, o inferno ainda não existe estritamente falando. É preciso esperar pela queda do anjo Lúcifer para que o reino infernal se objetive.
  33. O Deus de Boehme manifesta-se à medida que a natureza eterna se descobre. Esta é tenebrosa no início. Quando a Divindade investe na natureza, emergindo da sua claridade imóvel, ela é inicialmente invisível. A natureza é, antes de tudo, o muro de trevas que esconde Deus. Assim, as trevas precedem a luz. No entanto, elas só serão objetivadas depois dela, quando o anjo caído tiver estabelecido o seu reino. Anteriormente, a luz se teria manifestado no corpo dos anjos. Foi assim que Lúcifer terá conhecido sucessivamente a luz, depois as trevas. Ele próprio as terá manifestado.
  34. Seguindo o desenrolar do ciclo setenário, as trevas e a luz sucedem-se como dois mundos arquetípicos a que Boehme chama de princípios. As trevas são, portanto, o primeiro princípio, a luz o segundo. São, portanto, esses dois princípios que Lúcifer conhece sucessivamente, começando pelo segundo.
  35. Para Boehme, a manifestação divina só ganha sentido em relação a um sujeito que é o seu substrato. Ela objetiva-se tal qual ela é percebida por ele. Ela desenvolve-se de acordo com o progresso dessa percepção. O anjo conhece sucessivamente a luz e as trevas. Ora, a oposição entre os dois princípios, as trevas e a luz, é a causa da dualidade universal da qual a separação dos sexos será um aspeto, ao mesmo tempo que a contradição entre o amor e a cólera, entre o bem e o mal. A experiência do anjo, portanto, parece abranger ambos os princípios. A dualidade que o ser humano terrestre conhecerá já não estará objetivada na sua mente? Não, porque se os dois princípios foram revelados um depois do outro, nós ainda não estamos no estágio da manifestação divina onde eles aparecerão ao mesmo tempo e opondo-se. O anjo conhece sucessivamente os dois princípios, primeiro o mundo da luz, depois o das trevas, mas ele apercebe-se apenas de um de cada vez. Quando ele é o anjo glorioso, ele só conhece aquilo que ele é: a luz. Quando ele se tornou no príncipe das trevas, ele apreende apenas as trevas. Uma vez caído, o anjo não apreende mais a luz: as trevas não compreendem a luz. O anjo vive num, depois no outro princípio, e não nos dois ao mesmo tempo. Isso é o que o condena para a eternidade, porque o diabo de Boehme não será redimido.
  36. No momento em que conhece a luz, o anjo ignora o drama do fogo de onde ele veio. Ele não tem nenhuma ideia dos poderes que se chocaram. Ele só se apercebe duma totalidade harmoniosa. A luz que ele contempla só lhe revela uma unidade que parece indestrutível.
  37. É verdade que por baixo da luz, que é a carne radiante do corpo do anjo, permanecem as trevas que estão na raiz de todas as coisas, mesmo as mais sublimes. São elas que o anjo irá reativar quando, querendo forçar o ciclo da natureza para renascer ainda mais belo, ele voltará a soltar o fogo de onde veio a luz. No entanto, até que Lúcifer tenha perdido o seu corpo glorioso, a escuridão era apenas latente, como a noite escondida por baixo do dia. As trevas estão aprisionadas e só reina a luz que triunfou sobre o fogo escuro. As trevas originais não são mais visíveis: Boehme pensa em termos de visibilidade ou de ocultação.
  38. Assim, o anjo, enquanto ele é o seu corpo de luz, não percebe as trevas que estão cativas nele. Ele só as verá quando for lançado nas profundezas delas. Mas então ele só as perceberá a elas, porque ele mesmo ficará prisioneiro delas. Ele será as trevas, por isso ele não apreenderá mais a luz.
  39. Nós só conhecemos aquilo que nós somos segundo o princípio que nos engendra.17 O anjo é um ou o outro princípio, ele nunca abraça ambos. É nisso que os anjos são diferentes dos seres humanos. Eles são um ou outro dos dois contrários primordiais, a luz ou as trevas, mas não percebem a sua dualidade. Ora, nunca vendo os contrários juntos, podem eles compreender um sem o outro? O príncipe das trevas é incapaz de compreender a luz. Mas, quando ele era a luz, poderia ele realmente entendê-la quando não tinha experiência das trevas, apesar delas terem estado na origem da carne radiante do seu corpo?
  40. Boehme não o diz, mas duvidamos. De fato, podemos pensar no anjo glorioso o que será verdade de Adão, seu sucessor sobre o seu trono celeste. Falando de Adão antes da queda, Boehme escreve que na sua pessoa, Deus estava manifesto, mas Adão não sabia disso.18 É um paradoxo, porque Adão contemplava essa luz que emanava do seu próprio corpo. Boehme diz que essa contemplação era perfeita, mas ao mesmo tempo sugere que não o era. É que para ele, não se conhece realmente a luz se não se conhecem as trevas.
  41. A luz é sinónimo de consonância. Como saborear uma consonância se ela não é a resolução duma dissonância? Nem podemos apreciar uma unidade sem uma divisão prévia. É por isso que a dualidade é um momento necessário da manifestação divina. Certo, ela terá que ser superada, mas primeiro é preciso que ela tenha sido plenamente vivenciada. Em si mesmo, no seu absoluto, o Um não se divide. No entanto, ele aparece quebrado na imagem produzida pela alma que o procura. E é nesta imagem que ocorre a manifestação divina.
  42. A teosofia é um conhecimento de Deus que se adquire segundo a vivência da alma. Segundo a célebre definição da mística dada por São Tomás de Aquino, ela é um conhecimento experimental de Deus. Ora, a experiência da alma em busca de Deus é dramática. Ela começa na dor que causa uma profunda dilaceração. A revelação da dualidade universal não é da ordem do conhecimento abstrato.

Notas

  1. Boehme, De inamatione verbi I c.5,23 e c.9,13. [  ]
  2. De triplici vita hominis, c.6,68. [  ]
  3. Aurora, c.5,2. [  ]
  4. De triplici vita hominis, c.5,68. [  ]
  5. De tribus principiis, c.22,26 e 72; Mysterium Magnum, c.2,11 e 10,49. [  ]
  6. De tribus principiis, c.14,54. [  ]
  7. De incarnatione werbi I, c.2,9; Mysterium Magnum, c.25,34. [  ]
  8. De incarnatione verbi II, c.2,4-5; Clavis, 137. [  ]
  9. Informatorium novissimorum (Von den letzen Zeiten) II,3. [  ]
  10. De elecrione gratiae, c.9,15. [  ]
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