O Ser Humano Virginal - 1. Introdução

  1. As especulações modernas sobre o andrógino destacaram uma fórmula que Boehme aplica por um lado a Adão, tal como ele era antes da queda, por outro lado a Cristo, o segundo Adão. Ambos são o ser humano virginal que é o símbolo da humanidade perfeita e a quem Boehme chama em alemão die männliche Jungfrau. Boehme diz deste ser humano que ele é homem e mulher. Ele afirma ao mesmo tempo que não é nem homem nem mulher.1
  2. Adão é, portanto, esse ser humano perfeito do início dos tempos e Cristo reencarna-o na perspectiva da consumação dos tempos. Se imaginarmos no início um ser perfeito que era quer homem e mulher num único corpo, quer nem homem nem mulher, é de fato por causa daquilo que Adão se tornou posteriormente e por uma projeção num passado primordial. Tendo o homem e a mulher se tornado seres distintos, separados, nós os vemos a princípio reunidos, ou então ainda não eram nem macho nem fêmea.
  3. Há também a outra perspectiva, que é a do futuro. A separação entre o homem e a mulher terminará. A totalidade perdida será restabelecida na pessoa de Cristo. É graças a esse restabelecimento que poderemos defini-la. Para Boehme, a plenitude só pode realmente ser concebida se for o fim de uma realização. É preciso que ela seja uma unidade realizada à custa de um devir: o Um não é concebível sem uma divisão que o precede.
  4. A totalidade humana no princípio, que era uma unidade, só pode ser compreendida depois de ter sido quebrada e restabelecida. A ruptura é o nascimento de Eva, a mulher extraída do corpo de Adão e separada dele. Esta divisão é o efeito da queda. A dualidade do homem e da mulher, marcada pelo aparecimento de partes vergonhosas em ambos os corpos, é o sinal da decadência. É esta ruptura, causada pela culpa de Adão, que devemos considerar se quisermos ter uma ideia da plenitude restaurada na pessoa de Cristo, bem como na dos seus irmãos mais novos.
  5. A fratura do primeiro ser humano resulta numa oposição entre duas metades. Na medida em que existem separadamente, o homem e a mulher são contrários como a água e o fogo, a luz e a escuridão, etc. A oposição entre os sexos é apenas um aspecto da contradição universal no plano da nossa natureza. Será que o homem e a mulher se vão unir para alcançarem a conjunção dos contrários, a famosa coincidentia oppositorum estudada por dois estudiosos contemporâneos em relação à noção do andrógino em várias tradições, Carl Gustav Jung e Mircea Eliade?
  6. Ao casal humano correspondem outros casais de contrários na natureza. Como se traduz essa correspondência termo a termo? O homem é o equivalente da luz? É o princípio diurno, luminoso, solar? A mulher é a sombra? É assim que Jung vê a diferença entre os sexos e a sua abolição através de uma totalidade que reunisse a luz e as trevas. Veremos como é para Boehme.
  7. Examinaremos a noção de totalidade. Se a plenitude é alcançada pela conjunção dos contrários, será necessário especificar o significado dessa coincidentia oppositorum. Unir os contrários é, por definição, fazer com que eles não sejam mais contrários, é ir para além deles como tais. Na unidade reencontrada, os contrários são transcendidos. No entanto, como observa Mircea Eliade,2 “ao transcender os contrários, nem sempre terminamos com o mesmo modo de ser”. É por isso que a noção de coincidentia oppositorum nos parece que tem sempre que ser redefinida de acordo com o contexto em que aparece. O comentador de Boehme não pode usá-la como fórmula mágica que o dispensaria de qualquer exame crítico. Devemos precaver-nos contra o fascínio que ela exerce sobre as mentes modernas, porque lhes parece resolver milagrosamente a antinomia entre o bem e o mal.
  8. Unir os contrários e transcendê-los ao mesmo tempo é um paradoxo perfeitamente ilustrado pela definição do ser humano virginal, die männliche Jungfrau: ele é homem e mulher, mas não é homem nem mulher. Teremos nós que escolher entre os dois termos desse paradoxo? O ser humano perfeito de Boehme é a adição dum homem e duma mulher? Ele é bissexual? O Cristo da Boehme é hermafrodita como aquele que Jung encontra nas obras herméticas? Ou ele realmente transcendeu os sexos no seu corpo místico? Se o andrógino não é hermafrodita, como pode ser definido?
  9. Há ainda outro aspecto do problema. A expressão die mànnliche Jungfrau implica uma união que não é necessariamente a do homem e da mulher. Pode a Virgem celeste, a Sabedoria encarnada pelo ser humano perfeito, confundir-se com a mulher? Estar unido à Sabedoria, o que significa esta expressão, é o mesmo que formar o casal do homem e da mulher? É verdade que no vocabulário de Boehme, as palavras Jungfrau, virgem, e Weib, mulher, muitas vezes parecem intercambiáveis. No entanto, ele não confunde Eva e Sabedoria, ele opõe-as resolutamente.
  10. Boehme nega que uma mulher possa ser virgem segundo a sua natureza mortal. Aquilo a que nós chamamos de virgindade no plano das coisas terrestres não é a verdadeira pureza. “Nenhuma virgem mortal é pura”3 diz Boehme, o que significa que nenhum mortal é virgem.
  11. A mais sublime de todas as mulheres, Maria, mãe de Cristo, torna-se virgem, não o é segundo o seu nascimento terrestre. Ela torna-se assim pela virtude do Verbo quando a voz do anjo penetra nela.4 Mas então, a mulher e a virgem confundem-se por causa disso? Não, porque a pessoa de Maria desdobra-se. Por um lado, Maria é una com a Sabedoria que habita nela e que se encarna no fruto que ela dá à luz. Mas, por outro lado, esse fruto separa-se dela, e então a mãe terrestre, a mulher, é como que cortada. A mãe terrestre de Cristo não é virgem aos olhos de Boehme. É por isso que Cristo a deixa para se unir à sua Sabedoria.5 É nesta união, modelo da união mística, que a sua humanidade se manifesta plenamente. A mulher terrestre parece ficar excluída. Mas a mulher existe de outra forma para além da mulher terrestre? Esta é uma pergunta que se impõe ao leitor de Boehme.
  12. É na união de Cristo e da sua Sabedoria que a pessoa humana adquire a sua verdadeira dimensão. Esta união está ao nível de uma natureza celeste que é a natureza divina da qual os eleitos se tornam participantes. Essa outra natureza transcende perfeitamente a nossa humanidade terrestre regida pela dualidade dos sexos, mesmo quando um homem e uma mulher parecem ser apenas um. Se esquece essa transcendência, o comentador moderno expõe-se aos piores equívocos.
  13. Unir-se à Sabedoria não é unir-se a uma criatura para fundir-se com ela num único ser e, assim, pôr fim à separação entre os sexos. O sonho romântico do andrógino não tem nada a ver com o espírito da Boehme. Unir-se à Sabedoria é unir-se a um Deus que nos torna participantes da sua natureza divina, mas que nos ultrapassa infinitamente. A Sabedoria é o duplo da Divindade.6 É a Sabedoria que é Deus na medida em que a Divindade se comunica com a criatura.
  14. A Sabedoria, portanto, não é apenas um dos dois termos cuja soma faria uma totalidade. A Sabedoria é, por ela própria, a totalidade. A Sabedoria é a plenitude que se encarna em Cristo e segundo a qual ele é a imagem perfeita do Pai.7 O ser humano unido à Sabedoria é gerado à imagem de Cristo e manifesta nele próprio essa plenitude.
  15. A noção de totalidade só é definida em Boehme na perspectiva da união mística. Ela denota uma experiência religiosa, e não uma ciência que pretenderia ser positiva aplicando-se a uma parte invisível do ser humano, o seu ser psíquico. O psicólogo que, movido por uma preocupação com o rigor científico, deixa de lado qualquer ideia de transcendência e que só usa essa palavra para significar a invisibilidade do psiquismo sem qualquer referência a um mundo superior, merece o nosso respeito e deve ser entendido de acordo com a especificidade do seu propósito. No entanto, se ele se basear no trabalho de Boehme para construir o seu próprio sistema, ele apenas dará uma visão parcial.
  16. Jung refere-se a Boehme. Ele cita favoravelmente a fórmula do ser humano virginal, die männliche Jungfrau, que lhe serve para ilustrar a sua concepção do andrógino.8 Ele faz isto numa perspectiva que não é mais a da Boehme. Nós teremos sempre esta diferença em mente.

Notas

  1. Mysterium Magnum, c.18,2; c.19,17; c.41,23; c.56,20; De triplici vita hominis, c.6,68; De tribus principiis, c.18,22; De electione gratiae, c.7,17. Para as obras de Boehme, referimo-nos à edição Will-Erich Peuckert, fac-símile da edição de 1730, Stuttgart, 1955-1961. [  ]
  2. Mircea Eliade, Méphistophélès et l'Androgyne, Paris, 1962, p.153, n.86; ibid., n.125-127 (sobre Boehme). [  ]
  3. De tiplici vita hominis, c.6,70. [  ]
  4. Ver o nosso estudo Marie dans l'oeuvre de Jakob Böhme, Cahiers de l'Université Saint-Jean de Jérusalem, 6, Paris, 1980, p. 120 e 126. [  ]
  5. Ibid., p. 127. [  ]
  6. Sobre a Sabedoria em Boehme, ver os dois últimos capítulos da nossa obra, La naissance de Dieu ou La doctrine de Jacob Boehme, Paris, Albin Michel, 1985. [  ]
  7. Psychologia vera (Vierzig Fragen von der Seelen), qu.1,153; Mysterum Magnum, c.70,63. [  ]
  8. Carl Gusrav Jung, Gesammelte Werke, Olten, 1971-1982, 14/II, p.130 (Myserium Coniunctionis). [  ]
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