O Ser Humano Virginal - 1. Introdução
- As especulações modernas sobre o andrógino destacaram uma fórmula que Boehme aplica por um lado a Adão, tal como ele era antes da queda, por outro lado a Cristo, o segundo Adão. Ambos são o ser humano virginal que é o símbolo da humanidade perfeita e a quem Boehme chama em alemão die männliche Jungfrau. Boehme diz deste ser humano que ele é homem e mulher. Ele afirma ao mesmo tempo que não é nem homem nem mulher.1
- Adão é, portanto, esse ser humano perfeito do início dos tempos e Cristo reencarna-o na perspectiva da consumação dos tempos. Se imaginarmos no início um ser perfeito que era quer homem e mulher num único corpo, quer nem homem nem mulher, é de fato por causa daquilo que Adão se tornou posteriormente e por uma projeção num passado primordial. Tendo o homem e a mulher se tornado seres distintos, separados, nós os vemos a princípio reunidos, ou então ainda não eram nem macho nem fêmea.
- Há também a outra perspectiva, que é a do futuro. A separação entre o homem e a mulher terminará. A totalidade perdida será restabelecida na pessoa de Cristo. É graças a esse restabelecimento que poderemos defini-la. Para Boehme, a plenitude só pode realmente ser concebida se for o fim de uma realização. É preciso que ela seja uma unidade realizada à custa de um devir: o Um não é concebível sem uma divisão que o precede.
- A totalidade humana no princípio, que era uma unidade, só pode ser compreendida depois de ter sido quebrada e restabelecida. A ruptura é o nascimento de Eva, a mulher extraída do corpo de Adão e separada dele. Esta divisão é o efeito da queda. A dualidade do homem e da mulher, marcada pelo aparecimento de partes vergonhosas em ambos os corpos, é o sinal da decadência. É esta ruptura, causada pela culpa de Adão, que devemos considerar se quisermos ter uma ideia da plenitude restaurada na pessoa de Cristo, bem como na dos seus irmãos mais novos.
- A fratura do primeiro ser humano resulta numa oposição entre duas metades. Na medida em que existem separadamente, o homem e a mulher são contrários como a água e o fogo, a luz e a escuridão, etc. A oposição entre os sexos é apenas um aspecto da contradição universal no plano da nossa natureza. Será que o homem e a mulher se vão unir para alcançarem a conjunção dos contrários, a famosa coincidentia oppositorum estudada por dois estudiosos contemporâneos em relação à noção do andrógino em várias tradições, Carl Gustav Jung e Mircea Eliade?
- Ao casal humano correspondem outros casais de contrários na natureza. Como se traduz essa correspondência termo a termo? O homem é o equivalente da luz? É o princípio diurno, luminoso, solar? A mulher é a sombra? É assim que Jung vê a diferença entre os sexos e a sua abolição através de uma totalidade que reunisse a luz e as trevas. Veremos como é para Boehme.
- Examinaremos a noção de totalidade. Se a plenitude é alcançada pela conjunção dos contrários, será necessário especificar o significado dessa coincidentia oppositorum. Unir os contrários é, por definição, fazer com que eles não sejam mais contrários, é ir para além deles como tais. Na unidade reencontrada, os contrários são transcendidos. No entanto, como observa Mircea Eliade,2 “ao transcender os contrários, nem sempre terminamos com o mesmo modo de ser”. É por isso que a noção de coincidentia oppositorum nos parece que tem sempre que ser redefinida de acordo com o contexto em que aparece. O comentador de Boehme não pode usá-la como fórmula mágica que o dispensaria de qualquer exame crítico. Devemos precaver-nos contra o fascínio que ela exerce sobre as mentes modernas, porque lhes parece resolver milagrosamente a antinomia entre o bem e o mal.
- Unir os contrários e transcendê-los ao mesmo tempo é um paradoxo perfeitamente ilustrado pela definição do ser humano virginal, die männliche Jungfrau: ele é homem e mulher, mas não é homem nem mulher. Teremos nós que escolher entre os dois termos desse paradoxo? O ser humano perfeito de Boehme é a adição dum homem e duma mulher? Ele é bissexual? O Cristo da Boehme é hermafrodita como aquele que Jung encontra nas obras herméticas? Ou ele realmente transcendeu os sexos no seu corpo místico? Se o andrógino não é hermafrodita, como pode ser definido?
- Há ainda outro aspecto do problema. A expressão die mànnliche Jungfrau implica uma união que não é necessariamente a do homem e da mulher. Pode a Virgem celeste, a Sabedoria encarnada pelo ser humano perfeito, confundir-se com a mulher? Estar unido à Sabedoria, o que significa esta expressão, é o mesmo que formar o casal do homem e da mulher? É verdade que no vocabulário de Boehme, as palavras Jungfrau, virgem, e Weib, mulher, muitas vezes parecem intercambiáveis. No entanto, ele não confunde Eva e Sabedoria, ele opõe-as resolutamente.
- Boehme nega que uma mulher possa ser virgem segundo a sua natureza mortal. Aquilo a que nós chamamos de virgindade no plano das coisas terrestres não é a verdadeira pureza. “Nenhuma virgem mortal é pura”3 diz Boehme, o que significa que nenhum mortal é virgem.
- A mais sublime de todas as mulheres, Maria, mãe de Cristo, torna-se virgem, não o é segundo o seu nascimento terrestre. Ela torna-se assim pela virtude do Verbo quando a voz do anjo penetra nela.4 Mas então, a mulher e a virgem confundem-se por causa disso? Não, porque a pessoa de Maria desdobra-se. Por um lado, Maria é una com a Sabedoria que habita nela e que se encarna no fruto que ela dá à luz. Mas, por outro lado, esse fruto separa-se dela, e então a mãe terrestre, a mulher, é como que cortada. A mãe terrestre de Cristo não é virgem aos olhos de Boehme. É por isso que Cristo a deixa para se unir à sua Sabedoria.5 É nesta união, modelo da união mística, que a sua humanidade se manifesta plenamente. A mulher terrestre parece ficar excluída. Mas a mulher existe de outra forma para além da mulher terrestre? Esta é uma pergunta que se impõe ao leitor de Boehme.
- É na união de Cristo e da sua Sabedoria que a pessoa humana adquire a sua verdadeira dimensão. Esta união está ao nível de uma natureza celeste que é a natureza divina da qual os eleitos se tornam participantes. Essa outra natureza transcende perfeitamente a nossa humanidade terrestre regida pela dualidade dos sexos, mesmo quando um homem e uma mulher parecem ser apenas um. Se esquece essa transcendência, o comentador moderno expõe-se aos piores equívocos.
- Unir-se à Sabedoria não é unir-se a uma criatura para fundir-se com ela num único ser e, assim, pôr fim à separação entre os sexos. O sonho romântico do andrógino não tem nada a ver com o espírito da Boehme. Unir-se à Sabedoria é unir-se a um Deus que nos torna participantes da sua natureza divina, mas que nos ultrapassa infinitamente. A Sabedoria é o duplo da Divindade.6 É a Sabedoria que é Deus na medida em que a Divindade se comunica com a criatura.
- A Sabedoria, portanto, não é apenas um dos dois termos cuja soma faria uma totalidade. A Sabedoria é, por ela própria, a totalidade. A Sabedoria é a plenitude que se encarna em Cristo e segundo a qual ele é a imagem perfeita do Pai.7 O ser humano unido à Sabedoria é gerado à imagem de Cristo e manifesta nele próprio essa plenitude.
- A noção de totalidade só é definida em Boehme na perspectiva da união mística. Ela denota uma experiência religiosa, e não uma ciência que pretenderia ser positiva aplicando-se a uma parte invisível do ser humano, o seu ser psíquico. O psicólogo que, movido por uma preocupação com o rigor científico, deixa de lado qualquer ideia de transcendência e que só usa essa palavra para significar a invisibilidade do psiquismo sem qualquer referência a um mundo superior, merece o nosso respeito e deve ser entendido de acordo com a especificidade do seu propósito. No entanto, se ele se basear no trabalho de Boehme para construir o seu próprio sistema, ele apenas dará uma visão parcial.
- Jung refere-se a Boehme. Ele cita favoravelmente a fórmula do ser humano virginal, die männliche Jungfrau, que lhe serve para ilustrar a sua concepção do andrógino.8 Ele faz isto numa perspectiva que não é mais a da Boehme. Nós teremos sempre esta diferença em mente.
Notas
- Mysterium Magnum, c.18,2; c.19,17; c.41,23; c.56,20; De triplici vita hominis, c.6,68; De tribus principiis, c.18,22; De electione gratiae, c.7,17. Para as obras de Boehme, referimo-nos à edição Will-Erich Peuckert, fac-símile da edição de 1730, Stuttgart, 1955-1961. [ ↑ ]
- Mircea Eliade, Méphistophélès et l'Androgyne, Paris, 1962, p.153, n.86; ibid., n.125-127 (sobre Boehme). [ ↑ ]
- De tiplici vita hominis, c.6,70. [ ↑ ]
- Ver o nosso estudo Marie dans l'oeuvre de Jakob Böhme, Cahiers de l'Université Saint-Jean de Jérusalem, 6, Paris, 1980, p. 120 e 126. [ ↑ ]
- Ibid., p. 127. [ ↑ ]
- Sobre a Sabedoria em Boehme, ver os dois últimos capítulos da nossa obra, La naissance de Dieu ou La doctrine de Jacob Boehme, Paris, Albin Michel, 1985. [ ↑ ]
- Psychologia vera (Vierzig Fragen von der Seelen), qu.1,153; Mysterum Magnum, c.70,63. [ ↑ ]
- Carl Gusrav Jung, Gesammelte Werke, Olten, 1971-1982, 14/II, p.130 (Myserium Coniunctionis). [ ↑ ]
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