Da Assinatura das Coisas – Introdução de Deghaye 1

I. A VIDA DE JACOB BOEHME. A FORMAÇÃO DO SEU PENSAMENTO

  1. Jacob Boehme nasceu em 1575 perto de Gorlitz, na Silésia, muito perto da Boémia. Gorlitz fica junto ao rio Neisse, que hoje faz a fronteira entre a Alemanha e a Polónia. Boehme morreu lá em 1624.
  2. Escreveu a sua primeira obra, a Aurora, em 1612, meio século após a morte de Lutero. Viveu o primeiro período da Guerra dos Trinta Anos. A Batalha da Montanha Branca, recordemos, ocorreu em 1620.
  3. Jacob Boehme era filho de camponeses ricos. Sapateiro de profissão, acabou como comerciante ambulante: vendia luvas nas feiras. As suas viagens levaram-o até Praga. Viu o Eleitor Palatino entrar lá em 1619. Casou-se em 1599 e teve quatro filhos.
  4. O homem a quem um de seus amigos deu o título pomposo de philosophus teutonicus e em quem Hegel pensou ver o fundador da filosofia alemã, tinha apenas frequentado a escola da sua aldeia. Não sabia latim, foram os seus amigos que latinizaram o título das suas obras. Educado na religião luterana, era uma criança muito piedosa. Mas onde foi que ele conseguiu o material para as suas obras? Não estudou, mas no entanto, escreveu sobre Deus e sobre o nascimento do mundo.
  5. Boehme pretende ser um daqueles pequeninos a quem Deus dá a compreensão dos mistérios. Afirma ter sido instruído pelo Espírito Santo. Tinha visões. Uma delas, que ocorreu no ano de 1600, foi, se acreditarmos nele, a semente de toda a sua obra. Ao observar o jogo das luzes num vaso de estanho, o jovem Boehme mergulhou numa meditação a qual se transformou numa contemplação. Num curto quarto de hora, ele viu mais do que todos os livros podiam dizer. Entrou no mistério das origens. Entendeu que Deus se revelou pelo seu próprio movimento, na sua criação. Ele tinha recebido a graça de acolher esta revelação. Ela estava no vaso de estanho, mas era dentro dele que o mistério era contemplado. Deus fez com que ele fosse capaz disso.
  6. Boehme afirmou ter aprendido tudo do Espírito de Deus. No entanto, não estamos proibidos de nos questionar sobre o que é que os seres humanos lhe poderiam ter fornecido.
  7. Devemos primeiro considerar o meio religioso onde ele foi criado. Estamos num país luterano, onde a Escritura era o primeiro alimento do espírito. Os pensamentos de Boehme serão uma constante paráfrase da Bíblia de Lutero. Por outro lado, a pregação não poderia ter deixado de despertar as suas reflexões. Inculcou-lhe os elementos da fé luterana, mas também o levou a questionar-se sobre as grandes questões que dividiam os homens da Igreja.
  8. É difícil imaginar hoje a paixão que animava as querelas teológicas naquele tempo. Boehme ficou muito marcado pela guerra entre os teólogos. Quando ele dizia que todas as guerras são guerras de religião, ele pensava nas disputas deles. E a paz com a qual ele sonhava será, antes de tudo, a adesão perfeita a uma mesma doutrina recebida do Espírito Santo.
  9. Essas lutas inexplicáveis já não opunham mais, principalmente, os protestantes e os papistas. Os irmãos inimigos não eram apenas os protestantes luteranos e os calvinistas, mas também os luteranos entre si, alguns militavam pela estrita ortodoxia, os outros eram suspeitos de "cripto-calvinismo". No ano de 1601, um chanceler do eleitorado da Saxónia, Nicolaus Crell, foi executado por ter sido o líder do partido dos "cripto-calvinistas".
  10. Entre os grandes temas da discórdia estava o problema da predestinação. Os seguidores de Calvino e de Zwinglio foram repreendidos por defenderem a existência duma dupla predestinação de Deus levando à salvação de alguns, mas para os outros, o que quer que fizessem, seria a reprovação eterna. Esta questão obcecou Boehme. Deus pode determinar a morte do pecador antecipadamente ou é o próprio pecador que é o responsável pela sua condenação? Boehme não vai parar de responder a esta pergunta. O livro que aqui apresentamos é prova disso.
  11. Decretar antecipadamente a condenação de tal ou de tal alma é querer o mal. Deus poderia querer o mal? De onde vem o mal? Unde malum? A questão surge em todos os escritos de Boehme. Ele não cessa de responder a essa questão.
  12. A obra cuja tradução propomos, como indica o título alemão, trata do nascimento das coisas, ao mesmo tempo que as suas assinaturas. Se Boehme se questiona como as coisas nascem, é para saber como se explica o mal.
  13. A questão é colocada explicitamente: como nascem o bem e o mal? Para respondê-la, Boehme raciocina com relação ao debate teológico do seu tempo. Longe de deixá-lo indiferente, a guerra dos teólogos lançou-o numa perturbação profunda. Ela fez parte das provações que teve que suportar antes de encontrar a fé.
  14. Boehme tinha um espírito especulativo e uma natureza inquieta. Ele ficou tanto mais angustiado porque, na sua época, como durante a vida de Lutero, acreditava-se que o fim do mundo estava próximo. O Julgamento estava iminente, por isso não era conveniente ser apanhado em estado de pecado mortal. Ora, a imagem de Deus nos pensamentos do ser humano não era de forma nenhuma gratuita, ela era o espelho da sua alma, tanto para o melhor como para o pior. Essa imagem era o pivô duma luta terrível entre Deus e o diabo. A salvação do ser humano dependia disso. A juventude de Boehme foi de busca, no segredo do seu coração, da verdadeira imagem de Deus. Ele acreditava tê-la encontrado e revelou-a nos seus escritos.
  15. Boehme censurou os teólogos por alegarem compreender a verdade pelo raciocínio. Ele tinha um sentimento que se agravava cada vez mais desde a morte de Lutero: a religião parecia esgotada nas vãs disputas dos doutores. Portanto, como que para preencher o vazio criado pelos raciocínios dogmáticos, ocorreu um renascimento da oração. Um pastor de Gorlitz, Martin Moller, que morreu em 1606, tinha encarnado esse renascimento. Ele foi o autor de cânticos e de um livro devocional. Organizava, fora do culto público, reuniões para a edificação dos fiéis, comparáveis àquelas realizadas pelos pietistas a partir de 1675, e que, ironicamente, eram chamadas de “conventículos”.
  16. Foi através dessas reuniões que, acredita-se, Boehme tenha conhecido os seus primeiros amigos. O seu círculo expandir-se-ia. Eram cavalheiros ou médicos.
  17. Os amigos de Boehme eram instruídos. Eles tornaram-se seus discípulos. Mas ele próprio, necessariamente, lucrou com os conhecimentos deles. Graças a eles, ele pôde aprender sobre tradições que não estavam ao alcance dos fiéis comuns. A posição social deles garantia-lhes uma certa liberdade em termos de ideias religiosas. Nesses países luteranos, os nobres, quando eram piedosos, podiam confrontar-se com o dogma. Podiam dar-se ao luxo de aprofundar a sua fé colocando-se fora do comum. Constituíam uma pequena aristocracia espiritual da qual Boehme, um homem do povo, recebeu influência e, ao mesmo tempo, se impôs a ela.
  18. Durante a vida de Lutero, um cavalheiro silesiano, Caspar von Schwenckfeld (1490-1561), por um momento seguidor da Reforma, forjou a sua própria teologia e, pela disseminação dos seus escritos, suscitou uma comunhão de leitores. As suas ideias foram condenadas por Lutero, no entanto, formaram-se colónias de “Schwenckfeldianos” que, apesar da proibição, subsistiram até ao século 18. No tempo de Boehme, esses hereges povoavam as aldeias da Silésia. Os seus amigos não pertenciam a eles, mas, diz-se, alguns tinham afinidades com eles. Não temos nada de tangível que nos permita verificar uma contribuição, mas surpreende-nos encontrar em Schwenckfeld uma noção que será essencial para Boehme: o tema da carne celeste de Cristo e do ser humano novo. Apesar de toda a diferença que surgirá entre os dois sistemas, este encontro parece significativo. A ideia desta carne divina estava, portanto, difundida em certos círculos e Boehme foi capaz de se aperceber do seu eco, quer diretamente, quer através dos seus amigos.
  19. A doutrina do corpo celeste encontra-se nos escritos dum pastor saxão que Boehme leu: Valentin Weigel (1533-1588). Ele cita-o para o refutar, apesar de reconhecer os seus méritos.
  20. Como Schwenckfeld, Weigel era um espiritualista, ele idealizava Cristo. Para ele, se Jesus era como um de nós, era apenas na aparência. O mesmo se passava com a sua mãe. Ela não era filha de Joaquim, mas a encarnação do Espírito Santo. Esta idealização espiritualista era um ressurgimento do docetismo, a velha heresia à qual os gnósticos valentinianos aderiam. Boehme estava totalmente contra ela.
  21. Boehme contradiz Weigel, mas admite que ele escreveu belas coisas, especialmente sobre a união com Deus e sobre o novo nascimento. O corpo celeste é precisamente o fruto do segundo nascimento que, segundo o De signatura rerum, é a verdadeira transmutação. Assim, apesar de toda a importância do desacordo entre eles, há uma afinidade entre Boehme e Weigel, sem dúvida até mesmo uma filiação.
  22. Ao expressar o seu profundo desacordo com Weigel, Boehme admite ter beneficiado das suas leituras: ele compara-se à abelha que petisca nas flores. A sua famosa visão do ano de 1600 ensinara-lhe, disse ele, mais do que todos os livros que lera e que haviam sido escritos por grandes doutores. Certo, mas ele tinha-os lido!
  23. Schwenckfeld e Weigel representavam a herança do seu tempo. Eles próprios tinham recolhido a herança da mística renana do século 14.
  24. A teologia mística, que foi transmitida ao mundo luterano, veio de Tauler, que morreu em 1361. O jovem Lutero reverenciava Tauler, o Doutor iluminado. Em 1510, e novamente em 1518, ele editou um manuscrito anónimo ao qual deu o nome de Teologia germânica. Este pequeno tratado foi atribuído a um discípulo de Tauler. Foi escrito em alemão, Lutero pensou ter encontrado nele a revelação de uma verdadeira teologia alemã.
  25. A Teologia germânica tornar-se-ia por muito tempo o compêndio de teologia mística do meio luterano. No entanto, Lutero rapidamente se voltou contra a mística. Ela tinha-o seduzido porque exigia o total abandono à vontade de Deus, mas ele tornou-se resolutamente hostil contra ela porque ela divinizava o ser humano abandonado a Deus. No entanto, ela transmitiu-se no seio da Igreja Luterana e os pietistas honraram-na.
  26. A leitura da Imitação de Jesus Cristo acrescentava-se à da Teologia germânica. Vulgarizada na linguagem do povo, a teologia mística amalgamou-se com a espiritualidade da qual a Imitação, no século 15, se tinha tornado no símbolo: a devotio moderna. A imitação de Cristo é um leitmotiv do De signatura rerum.
  27. Falamos de Weigel. Para ele, a herança do misticismo medieval e da devotio moderna é enriquecida com uma contribuição mais recente: a filosofia da natureza de Paracelso, falecido em 1541. É o casamento entre Tauler e Paracelso que fará a especificidade da teosofia alemã da qual Boehme será o verdadeiro fundador, mas da qual Weigel terá sido o precursor.
  28. Na tradição de Tauler e do seu discípulo anónimo, a teologia mística germanizou-se. Paracelso, por sua vez, germanizou o hermetismo do Renascimento. A influência da sua obra foi muito grande, os próprios apócrifos contribuíram para isso. Muitos dos médicos da época de Boehme eram paracelsistas, começando pelos seus próprios amigos. A influência de Paracelso é muito marcante na linguagem de Boehme e na edificação do seu sistema. O teósofo usa o vocabulário do médico alquimista para fundar a ciência de Deus sobre uma filosofia da natureza.
  29. Boehme retomou a teoria das assinaturas, da qual Paracelso não foi o inventor, mas que foi um conceito-chave da sua medicina. O corpo é a figura da alma, é nesta verdade que se baseia uma ciência muito antiga: a fisiognomonia. Para o médico, há uma fisiognomonia das plantas que permite conhecer as suas virtudes estudando os seus carateres perceptíveis: a forma, a cor, o sabor, o odor. Como? Essas propriedades devem ser relacionadas com os astros de onde emanam. Os astros são definidos por qualidades dominantes. São essas qualidades que estão escondidas em todas as coisas. Elas constituem as virtudes das plantas. Mas os astros também estão dentro do nosso corpo. Segundo Paracelso, cada um dos nossos órgãos é governado por um astro, razão pela qual a medicina está ligada à astrologia.
  30. É através dos astros que o médico conhece o corpo humano. Fortalecido com este conhecimento, ele escolherá uma planta que esteja de acordo com o órgão doente. Ele unirá os semelhantes: as qualidades da planta serão as mesmas que, no nosso corpo, foram alteradas pelas doenças, elas ajudarão a restaurar a sua integridade.
  31. Os semelhantes são curados pelos semelhantes, similia similibus curantur. Paracelso raciocinava de acordo com este velho princípio adotado pela homeopatia moderna. Vamos encontrá-lo novamente no De signatura rerum. A aplicação parece simples. O médico de Paracelso toma como remédio uma planta que tem a mesma aparência do órgão a ser tratado. A eufrásia tinha manchas que pareciam olhos, ela curava as oftalmias. As folhas da pulmonária tinham a forma de um pulmão, elas eram usadas como peitorais. Seguindo o mesmo princípio, a hepática era usada para as doenças do fígado.
  32. Esses medicamentos são os da medicina antiga. Eles estão baseados em analogias que nos parecem simples demais. No entanto, para Paracelso, as coisas complicam-se. O médico não se limita à forma visível da planta. Ele não a usa como a encontra saída da terra. Ele processa-a para trazer à tona a forma sutil que é um corpo astral. Cada planta, no céu, é uma estrela. O próprio ser humano tem um corpo sideral no qual residem as virtudes ocultas do seu corpo terrestre. A assinatura visível é a imagem desse corpo sutil. É, portanto, esse corpo astral que deve ser apreendido para curar o corpo terrestre. Ele é a verdadeira assinatura e é ao seu nível que é preciso colocar em concordância o ser humano e a planta. O autor do De signatura rerum explicará como é que as assinaturas estão em simpatia ou como é que elas se rejeitam mutuamente. Na medicina, isto é entendido no plano das realidades astrais.
  33. Como fazer aparecer o corpo astral da planta? O médico de Paracelso não é apenas o astrólogo que discerne o espírito das coisas segundo as qualidades dos astros. Ele é, numa mesma pessoa, o alquimista que domina a arte do fogo. Ele pratica uma operação à qual se dava o nome de palingenesia. Ele calcina a planta para fazê-la renascer com a sua verdadeira forma, cujo aspecto visível era apenas a figura. Assim, faz aparecer o corpo das suas qualidades invisíveis.
  34. Essa operação é evocada no De signatura rerum, mas apenas brevemente, porque, diz Boehme, é uma questão de magia e é preciso tomar cuidado com os ímpios que a usariam mal. O ser humano que discerne as influências, na sua fonte, no corpo sideral, dispõe dela. Ele é capaz da magia, para o melhor ou para o pior.
  35. Para o médico, a alquimia é mágica. Boehme também fala da alquimia mágica. O médico substitui-se aos astros. Ele exerce o poder deles. Segundo Paracelso, ele próprio torna-se no astro que rege a vida do nosso corpo.
  36. O médico de Paracelso é um ser humano que morre e renasce como a planta. Ele nasce a partir do alto, quer dizer, revela-se segundo a realidade do ser humano sideral que estava oculto dentro dele. Para Paracelso, a medicina produz o remédio e engendra o médico, que é fruto das suas próprias operações.
  37. Finalmente, a medicina cura o doente. No entanto, a ambição do médico adepto não é apenas tratar tal ou tal afeição em particular, apesar de Paracelso ter sabido reconhecer a especificidade das doenças. Em profundidade, é o remédio universal que o verdadeiro "artista" procura. A busca da panacéia, a pedra filosofal, a "pérola", será o grande tema do De signatura rerum.
  38. O ser humano que se identifica com os astros cria, como o céu de onde emana, a vida na terra. O objetivo da obra química é recriar a matéria. O médico alquimista sabe como as coisas nascem e, fortalecido com essa ciência, recria-as. Segundo Paracelso, a vocação do ser humano é aperfeiçoar a criação. Na verdade, ele renova-a. A verdadeira vida nasce duas vezes, esta verdade é a chave da filosofia de Paracelso, mas também da teosofia de Boehme.
  39. O céu, com o qual o ser humano se identifica, é a alma do nosso mundo. É nessa alma universal que o Verbo criador engendra as coisas. Ele concebe a imagem do ser por vir. Essa imagem é o seu primeiro corpo. Ela é o corpo astral restaurado pelo adepto. Ela é, ao mesmo tempo, o espírito ativo de cada coisa e o corpo das qualidades que a constituirão. Para Paracelso, como para Boehme, todo espírito dá a si próprio um corpo onde habitará e que será a sua figura. Em todas as coisas há um espírito que aspira encarnar-se plenamente segundo a imagem que concebeu de si próprio.
  40. A faculdade para produzir imagens é a imaginação, que é comandada pelo desejo. Todas as coisas nascem do desejo, dirá Boehme. A própria vida é o desejo que lhe dá origem e que a faz florescer. A magia do desejo está na imaginação. Boehme foi capaz de encontrar em Paracelso a teoria da imaginação criadora que ele aplica ao próprio Deus.
  41. Atrás falamos do corpo astral. Paracelso de forma alguma o confunde com o corpo glorioso dos eleitos, que pertence a outro céu. No entanto, ele também evoca este último, que se identifica com o corpo de luz de Jesus. É este corpo celeste de Cristo que os fiéis comem no sacramento. Ele torna-se na própria carne deles. Nós reconhecemos a noção da carne espiritual que evocamos em conexão com Schwenckfeld e Weigel. Ela oferecia-se de diferentes maneiras à meditação de Boehme.
  42. Através de Paracelso, Boehme pôde recolher a herança do hermetismo. No De signatura rerum, encontramos a famosa máxima da Tábua de Esmeralda: «O que está em baixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está em baixo.» Este exemplo é significativo.
  43. Boehme foi iniciado na Cabala? Um dos seus amigos, um dos mais importantes, Balthasar Walther, um médico alquimista, era versado na Cabala, diz-se. Ensinou Boehme? Ele próprio estava em busca da verdadeira sabedoria e era de Boehme que a esperava, mas temos todos os motivos para supor que eles se enriqueceram mutuamente. O sistema de Boehme tem semelhanças com a doutrina do Zohar. A mais significativa de todas é a noção dum além que não é uma pura eternidade, mas um mundo intermediário ao qual o ser humano pode aceder enquanto vivo para ver Deus em imagem. Deus, em si mesmo, é incognoscível, mas nessa esfera ele produz a sua imagem que nos é possível contemplar se tivermos a fé verdadeira. Acomodando-se à nossa visão, Deus assume aí a forma de um ser humano celeste: o semelhante apreende o semelhante. O ser humano é o símbolo de Deus, Boehme dirá "a imagem" ou "a assinatura". Para Boehme, a Sabedoria assume a forma humana, assim como o céu dos anjos.
  44. O livro de Johann Reuchlin, De arte cabbalistica, publicado em 1517, foi a fonte da Cabala Cristã que se desenvolveu particularmente na Alemanha. Um discípulo tardio de Boehme, Friedrich Christoph OEtinger (1702-1782), tentou uma síntese entre as duas teosofias. O próprio Boehme terá sido influenciado por essa corrente? Como Paracelso, ele fala da Cabala como duma magia. Não diz mais nada. Ele terá tido contato com o verdadeiro misticismo judaico? Nós devemos limitar-nos a constatar um certo parentesco das ideias.
  45. Eis, então, esboçada em traços largos, toda a herança na qual Boehme foi capaz de beber e que, em graus variados, lhe permitiu explicar a sua vida interior. Certo, não basta fazer o inventário das influências possíveis ou reais para esgotar uma matéria tão rica. A sabedoria de Boehme, tal como ele a define, é fruto das suas visões. Em particular, a do ano de 1600 trouxe-lhe, segundo ele, a semente que não iria parar de crescer. As noções adquiridas através das leituras ou das conversações poderiam ajudá-lo a compreender o que se passava dentro dele e a objetivá-las nos seus escritos.
  46. No entanto, a vida interior de Boehme não é feita apenas de êxtases felizes. As suas visões são, elas próprias, fruto do sofrimento. Boehme diz constantemente que a luz brilha nas trevas. Isto significa que, para o ser humano, as trevas precedem sempre a luz. E as trevas são sinónimo de sofrimento.
  47. Como os grandes contemplativos cristãos, Boehme sabe que Deus prova aqueles a quem deseja conceder uma graça especial. Deus é o modelo dos alquimistas que submetem a matéria à prova do fogo. O ser humano é essa matéria. O fogo é o inferno que Deus faz com que ele atravesse em espírito, como Cristo na sua Paixão. Todas as coisas se revelam pelo fogo.
  48. A obra que se realiza no sofrimento é o próprio ser humano, dirá o autor do De signatura rerum. A obra escrita é o espelho que Boehme apresenta ao seu próximo para fazê-lo compreender o verdadeiro sentido da vida.
  49. Boehme fez da angústia o fundo tenebroso da sua doutrina. Sentiu o tormento dela dentro de si próprio. Essa angústia não pode ser totalmente explicada em termos de psicopatologia moderna. Tal como Boehme a sentiu, numa época em que o ser humano ainda estava muito preocupado com a sua salvação, a angústia era o desespero duma alma que lutava para encontrar a luz, enquanto Deus parecia recusá-la. Uma vez liberto, o ser humano descobrirá que o seu combate foi desejado por Deus, mas antes disso terá vivido o inferno. O De signatura rerum evoca esse inferno ou esse purgatório.
  50. Boehme carregava dentro de si esse sofrimento que já existia antes de todos os males que os seres humanos pudessem infligir-lhe. Compreendeu que esse sofrimento lhe foi enviado por Deus e por isso integrou-o na sua doutrina. Mas também lhe pareceu que os seres humanos que o perseguiam eram, eles próprios, instrumentos de Deus, assim como os fariseus que foram os carrascos de Cristo. O próprio diabo está ao serviço de Deus. Para Boehme, todos os fariseus se conjugaram numa única pessoa: o pastor Gregorius Richter. Esse fanático da ortodoxia luterana era o diabo! Ele era a autoridade religiosa de Gorlitz desde 1606, sucedendo a Martin Moller. Morreu três meses antes do herege.
  51. Foi o primeiro manuscrito de Boehme, a Aurora, que desencadeou sobre ele a cólera do eclesiástico. O escândalo estourou em 1612. Boehme, sapateiro de profissão, pôs-se a escrever para preservar a memória da revelação que tinha recebido. Em princípio, o texto da Aurora não devia ser divulgado. Mas o escritor, entusiasmado, cometeu a imprudência de emprestá-lo. Foi copiado e o pastor ficou a saber do caso. Entrou numa santa cólera. Como ousa um sapateiro escrever sobre Deus e a natureza? Sem sequer ser examinado, o manuscrito foi apreendido e o autor foi lançado na prisão. O infeliz foi solto, mas foi proibido de escrever.
  52. Boehme submeteu-se. Reincidiu, mas só ao fim de sete anos. Em 1619 escreveu Os três princípios. Durante esses anos de silêncio, tinha sido cruelmente dilacerado, dividido entre o seu dever de obediência e a crescente certeza da sua vocação superior. O extraordinário acontecimento da Aurora criou-lhe amigos fervorosos que o incitaram a escrever novamente para completar as revelações brutalmente interrompidas. De 1619 a 1624, ano da sua morte, o fluxo das suas obras fluirá sem interrupção.
  53. Durante o inverno de 1619-1620, Boehme escreveu A tripla vida do ser humano. Com esta obra, deu à sua doutrina a sua estrutura definitiva. Os escritos que se seguiram apenas a tornaram mais explícita, tanto o Mysterium Magnum (1623) quanto o De signatura rerum (1622).
  54. Boehme nunca deixou de ter o pastor a implicar contra si. Quando, sete anos depois do escândalo da Aurora, ele começou a escrever novamente, as coisas só podiam piorar. No entanto, desta vez, o magistrado de Gorlitz não interveio. E mesmo, até ao seu último ano de vida, o pensador impenitente conseguiu multiplicar as suas obras. A autoridade civil foi tolerante. Ela sem dúvida considerou que, enquanto os textos não fossem entregues ao comum dos fiéis, não havia perigo. O próprio Boehme exortava os seus seguidores a não deitarem as pérolas aos porcos. A rede que ele tinha tecido com as suas revelações parecia uma sociedade secreta. Sob o manto do esoterismo, podia ser tolerado, se não pelo pastor, pelo menos pela autoridade que tinha o direito de justiça.
  55. Mas, no último ano de vida de Boehme, o pior aconteceu. Através dos cuidados dum amigo zeloso, um manuscrito foi impresso. Foi a primeira vez, e o cúmulo do desafio, que a coleção apareceu em Gorlitz! Incluía três tratados reunidos sob o título: O Caminho para Encontrar Cristo.
  56. A cólera do pastor esteve à altura do evento. Pediu ao magistrado para intervir, mas o prefeito de Gorlitz e a assembleia influenciaram os amigos de Boehme. Sem dúvida de comum acordo, ele foi aconselhado a ficar longe por algum tempo. Temia-se, dizia-se, que a ordem pública fosse perturbada. É verdade que o pastor excitava os fiéis contra o ímpio e os seus.
  57. Boehme foi convidado para a corte de Dresden. Foi para lá cheio de ilusões, imaginando que na metrópole do luteranismo os espíritos eram mais esclarecidos do que em Gorlitz, e que seriam conquistados para os seus pontos de vista. Tinha a louca esperança de se encontrar pessoalmente com o Eleitor para este chamar à razão o seu carrasco. Foi recebido pelo médico alquimista da corte e ficou desencantado. Permaneceu lá por mais algum tempo, doente e recebendo más notícias de Gorlitz. A sua família estava a ser submetida aos ultrajes dos paroquianos amotinados pelo seu pastor.
  58. Finalmente deixou Dresden. Evitando Gorlitz, fez a ronda dos seus amigos, como se quisesse despedir-se deles. Depois, regressou a casa. Em 17 de novembro, foi chamado por Deus enquanto ouviu a música dos anjos. O pastor tinha morrido em 24 de agosto, mas o seu sucessor recusou-se a enterrar o herege. Foi necessária uma ordem do prefeito para que Jacob Boehme tivesse um enterro cristão. Mas o povo furioso quebrou a cruz que tinha sido colocada sobre o seu túmulo.
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