Da Assinatura das Coisas – Introdução de Deghaye 2

II. A DOUTRINA

  1. Ao esboçar a biografia interior de Boehme, evocamos alguns pontos da sua doutrina. Vamos agora dar uma visão geral, colocando-nos na perspectiva do De signatura rerum.
  2. Boehme não era médico nem alquimista mas, no entanto, seguindo Paracelso, pretendia instruir os seres humanos na arte. No De signatura rerum, expõe uma filosofia da medicina. Para ele, como para Paracelso, a medicina baseia-se numa ciência que inclui o céu e a terra. Ora Boehme não é astrólogo, ou, como dizia Paracelso, "astrónomo", assim como não era, mais uma vez, alquimista. No entanto, pretendia possuir uma ciência da natureza definida como universal. Como é que ele pode fundamentar essa pretensão? Fazendo a ciência do nosso universo decorrer duma ciência mais elevada, mas que a engloba. Dum ponto de vista superior, tudo pode ser explicado.
  3. Conhecemos as coisas entendendo como é que elas nascem. Por outras palavras, temos que remontar à criação do nosso mundo. Ora, para Boehme, a origem das coisas ainda está mais longe.
  4. A ciência do médico inclui o céu e a terra, é o que diz Boehme seguindo Paracelso. A vida terrestre é governada pelos astros, razão pela qual o médico alquimista tem que conhecê-los. Mas para Boehme, o céu não é apenas o céu do nosso mundo. O nosso céu vem doutro céu que é o céu dos anjos. A primeira origem é a desse mundo celeste que preexiste àquele no qual nós vivemos. Esse outro mundo é um além, no entanto está no coração do nosso céu e da nossa terra, que são a sua emanação. Ele é a fonte de toda a vida.
  5. A ciência total, da qual Boehme deriva toda a ciência particular, estende-se a esse mundo que é o fundamento do nosso. Trata-se realmente dum outro universo. Esse céu tem astros que são os arquétipos daquelas que vemos brilhar no nosso firmamento, Boehme dá-lhes os mesmos nomes. Esse mundo inteligível é uma outra natureza que o teósofo chama de natureza eterna. É o mundo intermediário entre Deus e o nosso, ao qual aludimos quando nos questionamos sobre uma relação entre Boehme e a Cabala.
  6. Essa outra natureza é dita eterna, porém tem um começo. Conhecê-lo é saber como ela nasce. O seu nascimento é a primeira criação.
  7. Esse mundo, dito eterno, é o modelo do nosso mundo temporal e, como ele, nasce em sete dias. Boehme descreve essa génese primordial. Ela só tem sentido em relação a Deus que cria para se revelar. Deus não se confunde de modo algum com a natureza, mas produz nela a sua imagem a qual aparece à medida que ela se forma. Nessa imagem, Deus também nasce.
  8. O ser humano é a única criatura que consegue apreender essas duas naturezas: nós só sabemos aquilo que somos. No entanto, não é o ser humano terrestre que recebe essa revelação. A natureza terrestre contém a natureza celeste, mas não a percebe: a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a recebem. A natureza mortal é a figura da natureza eterna, mas não o sabe. Reduzida a si própria, a figura permanece letra morta.
  9. É realizando-se na sua natureza celeste que o ser humano chega ao verdadeiro conhecimento. É para o ser humano interior que Deus reserva as suas maravilhas. Esse ser humano contempla a natureza eterna que ele mesmo é, mas também só ele vê a natureza visível tal como ela é realmente. Ele sabe que o visível é sempre a representação do invisível. Só ele sabe o que é uma assinatura.
  10. O adepto de Boehme é um eleito de Deus no sentido pleno desse termo. Ele tornou-se no ser humano interior que abrange toda a extensão do conhecimento. Ele não é apenas o ser humano astral no qual se torna o médico de Paracelso. O ser humano astral é um ser invisível, mas o céu do ser humano interior é a "natureza divina" da qual os filhos de Deus se tornam participantes. É o mundo da graça, o reino de Deus. Boehme faz nascer aí o verdadeiro médico. O médico de Paracelso nascia "a partir do alto", mas ao nível do astral. Certo, Paracelso também sabia o que era o outro segundo nascimento, aquele do qual Jesus fala a Nicodemos no Evangelho joanino, e ele pensava que isso tornava o médico capaz de curar os doentes como o próprio Cristo.
  11. Para Boehme, o mundo temporal, visível ou invisível, astral ou apenas terrestre, é a assinatura do mundo divino que o habita. O modelo não seria conhecido sem a assinatura que nos convida a procurá-lo para além da letra que ele representa. E é quando encontrarmos o modelo que realmente decifraremos a assinatura. Desde a Aurora, Boehme afirma que para descobrir os mistérios, basta observar a natureza ao nosso redor, os astros, as plantas. Mas é preciso ter-se tornado capaz disso!
  12. A natureza eterna é o modelo da nossa natureza temporal. Mas o próprio modelo é uma assinatura. A natureza divina é a assinatura do Deus que ela revela.
  13. Deus só se revela nas suas obras. A natureza eterna é o começo das obras divinas. A teosofia é uma sabedoria, isto é, uma ciência de Deus revelando-se passo a passo. A revelação de Deus é a sua própria obra. Deus revela-se engendrando-se na natureza e com ela. A teosofia descreve esse duplo engendramento.
  14. As obras de Deus começam pelo céu, que é a carne dos anjos. Deus encarna-se nessa carne espiritual, depois encarna-se na nossa carne mortal. Nesses dois níveis, a natureza é a encarnação de Deus.
  15. Assim, a ciência da natureza faz uma unidade com a ciência de Deus. Se o ser humano é chamado a penetrar no mistério da natureza, é porque Deus escolheu revelar-se nela. A natureza só é verdadeiramente conhecida se nela virmos o templo de Deus. Em qualquer grau, ela só existe em relação com Deus. Quando o ser humano o esquece, fica cego.
  16. Mesmo as trevas só podem ser concebidas como efeito da vontade divina. Deus está escondido nelas, mas omnipresente. Mesmo no inferno, Deus está presente, porque o diabo está-lhe sujeito.
  17. A ciência da natureza é a ciência do ser humano, ao mesmo tempo que a ciência de Deus. A natureza não pode ser considerada separada de Deus. Ela é o corpo de Deus, diz Boehme. Mas é no ser humano que ela atinge a sua plenitude para se tornar no espelho perfeito de Deus.
  18. Apenas no ser humano a natureza está inteiramente presente. Os anjos só têm um corpo celeste. Adão, pelo contrário, foi criado com um corpo celeste e um corpo terrestre. Os anjos não possuem conhecimento pleno. Por muito celeste que seja, a natureza deles não representa a perfeição última, porque é incompleta. Ora, cada ser só conhece a sua própria natureza.
  19. O ser humano conhece-se de acordo com a sua natureza dupla e é assim que ele conhece a Deus. Ele contempla o ser humano celeste que é nele a imagem de Deus. Mas esse ser humano interior traz a assinatura do ser humano "exterior". A natureza temporal morre para que a natureza eterna possa brilhar no ser humano. Mas ao morrer, a natureza temporal imprime no ser humano a assinatura do ser que ela foi. Esta assinatura invertida é a memória das suas ações, dos seus sofrimentos, da sua santidade. No ser humano, o corpo dos anjos é enriquecido com as nossas obras inscritas nele para a eternidade. Assim, o corpo de luz é, ao mesmo tempo, a imagem de Deus no ser humano e do ser humano em Deus.
  20. Para compreender a doutrina de Boehme, é preciso seguir o caminho que leva do Deus desconhecido até essa imagem.
  21. Partimos de uma Divindade que, em si mesma, é totalmente inacessível. Como o Infinito dos Cabalistas, En-Soph, esse Absoluto não tem nome. Ele não é Deus. Ele é o Nada. Esta Divindade “pura” não é a Santíssima Trindade. Ela não é nem a luz nem as trevas, não é nem o bem nem o mal. Ela é, em si, absolutamente incognoscível. Como é que o Nada poderia ser conhecido?
  22. O paradoxo da teosofia de Boehme é que essa Divindade concebe o propósito de se revelar. Ela "sai de si própria" para realizar esse único propósito. Ela assemelha-se, desde então, à Divindade que, seguindo uma tradição islâmica, diz ela mesma: "Antes, eu era um tesouro escondido, mas eu queria ser conhecido, por isso criei as criaturas para ser conhecido." O Deus de Boehme cria para ser conhecido. Mas é ao ser humano que ele se revela. É por isso que, de acordo com Efésios 1, Deus elegeu o ser humano em si próprio antes de criar o nosso mundo.
  23. A Divindade “pura” é a Eternidade sem começo. Ela é o Infinito que não está em lugar nenhum e que é inatingível. Para ser conhecida, a Divindade tem que aparecer num começo e tem que fazer com que a sua imensidão seja circunscrita numa imagem. Ela não estava fundada em nada, ela vai fundar-se numa imagem primordial que será a sua Sabedoria. É nessa imagem que a Divindade sem nome será Deus.
  24. Deus é a imagem da Divindade insondável. Deus engendra-se nessa imagem para se oferecer à contemplação do ser humano. Ela tem a forma humana, porque o semelhante conhece o semelhante. A Sabedoria é a imagem de Deus num corpo que é a forma humana. Deus atribui a si esse corpo nos seus pensamentos, mas depois na realidade sensível.
  25. A Divindade é o primeiro Nada. No desdobramento da sua manifestação, Deus manterá a pureza do Nada, que ele não pode perder. Mas na criatura habitada por Deus, essa pureza tornar-se-á sensível. Como Boehme explica no De signatura rerum, o Nada torna-se numa qualidade sensível.
  26. Em si mesma, a Divindade é uma claridade que não é perceptível, nem mesmo para o ser humano interior. Em Deus, a claridade inatingível torna-se na luz, que é o seu corpo. A luz é a pureza que se tornou sensível para o ser humano.
  27. Em si mesmo, o Infinito não se revela. O ser humano perfeito de Boehme é o completo oposto do personagem de Fausto que, na tragédia de Goethe, pretende abraçar o Infinito. Mas Deus, ele próprio, para o ser humano, não seria perfeito se fosse só o infinito incircunscrito. O Deus perfeito é o Deus revelado numa imagem que tem o contorno da forma humana. Os teólogos definem Deus rejeitando tudo o que é próprio do ser humano. O Deus de Boehme é Deus para o ser humano, isto é, Deus tal como ele nasce no ser humano. Deus encarnou-se na humanidade de Cristo, é preciso que ele se encarne em cada um de nós, esta é a lição que Boehme dá aos pastores. Em Cristo, Deus tornou-se como um de nós, foi assim que ele se deu a conhecer. Que cada um de nós se torne no Cristo, e Deus revelar-se-á a ele em particular. A finalidade da revelação é que Deus seja tudo em todos. O Infinito será então uma plenitude.
  28. Porque é que a Divindade insondável concebe o plano de se revelar? Por jogo, diz Boehme. A criação é um jogo que começa nos pensamentos de Deus e que continua na realidade sensível. Instintivamente, Boehme evita a armadilha do determinismo que revelaria uma necessidade em Deus. Ele descreve a vontade divina como absolutamente soberana. Ela é a liberdade. É por isso que todas as suas obras são realizadas com toda a gratuidade do jogo.
  29. Mas o jogo não pode ter sido o único motivo para a manifestação divina. A vontade de Deus é o amor. O nome de Jesus significa o amor. Ele é, na eternidade, o verdadeiro nome de Deus, que se encarna na humanidade de Cristo.
  30. O que é próprio do amor é o dom de si. Deus dá-se ao ser humano para que o ser humano o conheça participando da sua glória e da sua felicidade. Mas no ser humano, Deus conhece-se a si próprio e glorifica-se, porque o ser humano torna-se Deus. De acordo com a antiga máxima, Deus torna-se ser humano para que o ser humano se torne Deus. Elevar o ser humano à sua própria dignidade, fazê-lo participar dela, é entregar-se totalmente a ele. Mas pelo efeito desse dom, Deus revela-se a si próprio na plenitude da sua glória.
  31. É por isso que Deus deseja o ser humano. Deus precisa do ser humano para aumentar a sua glória? Deus é auto-suficiente, diz Boehme. No entanto, ele raciocina como se Deus ganhasse em perfeição ao revelar-se. Certo, na sua mente, Deus é perfeito desde toda a eternidade e se a sua perfeição parece aumentar, é apenas na perspectiva da sua revelação. Boehme sabe distinguir entre Deus tal como ele é em si mesmo e Deus tal como ele se revela. É a este último que ele se refere principalmente. É o Deus revelado que é um Deus em formação.
  32. Para compreender Boehme, é preciso abstrair um ponto na eternidade. É preciso fixar o instante em que a Divindade concebe o propósito de se revelar. Na eternidade "pura", a vontade divina, para usar a expressão de Boehme, tinha a sutileza do Nada. Ela era o Nada, por assim dizer na nossa linguagem, ela era totalmente indeterminada. Ora, nesse momento mágico, a Divindade descobre as maravilhas que estão dentro dela, porque, fora dela, ainda nada existe. Neste prólogo da sua manifestação, a Divindade é representada por um olho que aparece no Infinito. Este olho só pode olhar para dentro de si próprio. O tesouro que ele contempla está dentro dele.
  33. O olho simboliza para Boehme o nascimento do desejo nos diferentes graus da manifestação divina. Nós desejamos aquilo que nós vemos em espírito. Deus imagina a natureza antes de criá-la. Todas as coisas nascem do desejo e da imaginação, lemos nós no De signatura rerum.
  34. O olho primordial é o espelho mágico no qual a Sabedoria vê todas as coisas por vir. As maravilhas, que Deus contempla pela sua Sabedoria, são aquelas que não aparecem no Infinito sem nome, mas que se vão desdobrar nas obras de Deus.
  35. A totalidade da manifestação divina, em ambas as naturezas, está nesse primeiro espelho. Mas essa totalidade é indistinta. Por mais visível que seja, é um mistério que terá de ser desvendado. Ela é a semente das coisas que nascerão na natureza e com ela. Esse mistério, que preexiste à natureza e que lhe dará origem, chama-se mysterium magnum. Essa semente, que contém todas as coisas em potência, é o caos. É neste nível que se localiza a primeira origem do Ser, que surge do Nada, ex nihilo, pela magia da imaginação divina.
  36. O mistério das origens, o mysterium magnum, vai abrir-se à medida que a natureza eterna nascer. Será explicitado em sete vezes. A natureza é o livro cujos sete selos se abrem um após o outro.
  37. A natureza eterna é uma grande alma. Ela é “a alma eterna”, o modelo das nossas almas. É um mundo inteligível, porque nela ainda não existe nada para além dum espírito. Ela é um mundo sensível, porque é a nossa sensibilidade que nela preexiste. Para Boehme, uma alma é sempre uma alma sensível. A alma eterna é o sensório que Deus atribui a si próprio para se comunicar com a sua futura criação. Nós vemos esse sensório a formar-se. No sexto grau, a alma eterna forma-se com os cinco sentidos e, ao mesmo tempo, manifesta-se a Inteligência divina. É a Inteligência que faz deste mundo dos sentidos um mundo inteligível. Mas sem os sentidos, ela não se revelaria. O Espírito puro não se revela em si próprio. Ele só é percebido através duma sensibilidade. Certo, é com os seus sentidos espirituais que o ser humano o apreenderá.
  38. Os sentidos são representados primeiramente pelas qualidades que eles percebem: o frio e o quente, a doçura e a amargura, etc. A essas qualidades Boehme associa as emoções: a angústia e a alegria. Elas são divididas em sete arquétipos que são os sete espíritos ou as sete formas da natureza. Cada um é o modelo dum planeta, de acordo com as qualidades ligadas a ele. Os planetas ainda não foram criados, porém o espírito de cada um preexiste a eles e cada arquétipo é um espírito recoberto por um corpo. As sete formas da natureza eterna são tanto corpos quanto espíritos. O próprio céu eterno é um corpo inseparável do Espírito de Deus encarnado nele.
  39. Uma vez revelada, a natureza eterna é o céu. Ela será a carne dos anjos. No entanto, ela só será verdadeiramente revelada na segunda metade do seu ciclo setenário. Na primeira parte, ela engendrou-se para se revelar. Para Boehme, todas as coisas se revelam engendrando-se, ou melhor, reengendrando-se. Correlativamente, conhecer as coisas é criá-las na sua plenitude, enquanto que o sujeito cognoscente se cria a si próprio à semelhança delas.
  40. O ciclo da revelação primordial é, antes de tudo, uma cosmogonia que ocorre na noite. É no quarto grau que a luz brota. Ela é identificada com o Sol, o coração da natureza eterna.
  41. A primeira fase do setenário estabelece o primeiro princípio. É o reino das trevas. A luz só pode brilhar nas trevas, assim a noite tem que preceder o dia. A luz funda o segundo princípio, que compreende a segunda metade do engendramento sétuplo. Deus cria primeiro as trevas e a luz, depois, a partir de ambas, cria o nosso mundo, que será o terceiro princípio.
  42. O espírito da luz é o amor. Apropriado a Vénus, o amor manifesta-se no quinto grau, ao mesmo tempo que a luz. O amor é sinónimo de misericórdia e de paz. Nas trevas, a guerra desenrolava-se. A noite não é apenas a privação do dia, é a mãe de todas as violências.
  43. O sexto espírito da natureza eterna é tanto a Inteligência, representada por Júpiter, quanto o Verbo celeste, que é Mercúrio. Para Boehme, o pensamento e a linguagem estão inextricavelmente ligados. O Verbo é tanto a voz de Deus quanto a palavra que ela pronuncia.
  44. A luz e o amor são um com a Inteligência e o Verbo. Cada espírito arquetípico engendra o seguinte e permanece nele. O sétimo une-os a todos: é o corpo de luz da alma eterna. A carne desse corpo é o santo elemento ou, no singular, o elemento. Essa substância preciosa será o céu supremo ou a carne dos anjos. Ela é a natureza perfeita com relação aos quatro elementos da nossa natureza, que procedem dela, mas cuja quaternidade é o signo da divisão. Ela era a carne de Adão e o paraíso.
  45. No Mysterium Magnum, Boehme dará o nome de Saturno ao primeiro e ao sétimo espírito da natureza. Para esses dois contrários, Saturno representa o corpo. Quando a natureza está completa, a natureza eterna é um corpo de luz. No início ela era um corpo tenebroso, endurecido ao extremo. Esse primeiro corpo irá desaparecer para que o corpo glorioso apareça.
  46. No primeiro princípio, Saturno tem apenas valores negativos. É a força opressora das trevas que encerram a matéria, que a solidificam e que a tornam opaca. É o arquétipo do corpo, prisão da alma. É um símbolo da morte, porque impede que a vida floresça.
  47. A génese da natureza eterna representa o nascimento da vida. Cada espírito é a vida que anseia por se encarnar, porque ela só pode florescer num corpo. Para Boehme, um espírito sem corpo é uma alma em busca desesperada de si mesma.
  48. Na noite primordial, a vida está a nascer, mas ela brota com tanta violência que sufoca. Ela fecha-se em si mesma. O que acontece na alma eterna prenuncia a realidade da nossa vida terrena, que se assemelha a uma morte. A vida só florescerá no ser humano novo. O ciclo da alma eterna dá a dimensão duma cosmogonia à gestação que se realizará na alma humana.
  49. No primeiro grau, Saturno simboliza a aspereza. A palavra usada por Boehme faz pensar na rugosidade e na dureza da pedra. Mas o mesmo espírito é a força violenta da sofreguidão. Desde o seu nascimento, a natureza identifica-se com o desejo. O setenário é o ciclo do desejo. Sob aparências contraditórias, é sempre o desejo de Deus que anima os sete espíritos. A natureza é o fruto desse desejo, mas para engendrá-la, ele identifica-se com ela, ele desposa as suas formas sucessivas. O ciclo da natureza eterna é a odisseia da vontade divina.
  50. O desejo de Deus torna-se no desejo da natureza. Ora, se Deus quer a natureza, é para trabalhar nela, para se manifestar nela. Mas desde o início, a natureza quer existir por si própria. É o excesso do seu desejo que cria o drama.
  51. Na força original da natureza, o desejo é voraz. Ele é o ímã que atrai tudo a si. O desejo busca avidamente uma comida, ora é a ele próprio que ele devora. Ele engorda de si próprio. Ele torna-se numa matéria cada vez mais espessa e que endurece ao extremo. Ele fica prisioneiro da sua própria substância. Ele quer fugir dessa prisão, porque ele sente nele a presença da vontade divina que representa o espírito da liberdade.
  52. Eis como o desejo se desenvolve, tornando-se no seu próprio inimigo. Ele dá origem a essa vontade adversa que é o segundo espírito arquetípico e que tem o nome de Mercúrio. No primeiro princípio, Mercúrio é a vida tenebrosa. É o desejo que ainda não se encarnou e que está em plena ebulição. Ele é uma figura formidável, como Saturno. No segundo princípio, ele é a vida florescendo na alegria.
  53. O primeiro arquétipo da alma eterna é a aspereza. Ela engendra o seu contrário, que é chamado de amargura. O gosto amargo da vida marca o despertar da sensibilidade. A natureza é uma alma sensível.
  54. Saturno é o arquétipo da matéria solidificada ao extremo. É o fiat que comprime para formar os corpos. O arquétipo é tanto o modelo quanto a força que dele emana. Em Saturno, ele é o modelo criador, tanto nas trevas quanto na luz.
  55. Mercúrio é a vida que luta para se libertar. A sua arma é o aguilhão que golpeia furiosamente contra a parede da sua prisão. É significativo que, para representar a vida sufocada na matéria, Boehme tenha escolhido o aguilhão da morte, segundo a primeira epístola aos Coríntios. Essa vida tenebrosa não é mais do que uma morte. Para Boehme, a morte precede a vida.
  56. Saturno é o frio. Ele é a natureza congelada, que tem a imobilidade da morte. Mercúrio faz pensar num pico que uma força invisível espetaria na espessura do gelo para fazê-lo estourar. Esse pico que se desencadeia furiosamente é o arquétipo do movimento. Saturno simboliza a inércia da matéria e Mercúrio simboliza a mobilidade do espírito. A inércia é total, a mobilidade é extrema. Antes de se fixar, a vida é esse movimento furioso. Ela só se pacificará num corpo verdadeiro. A luz será este corpo. A luz é tradicionalmente o símbolo do movimento que ocorre no repouso: a luz difunde-se sem um movimento aparente.
  57. Os dois primeiros espíritos arquetípicos da natureza eterna travam um combate cuja violência é proporcional a um drama cosmogónico. As trevas são essa violência, elas não são apenas uma simples ausência de luz. As trevas são a guerra, a luz é a paz.
  58. No primeiro princípio, isto é, nas trevas originais, nenhum dos dois adversários consegue vencer. Um é atraído pela sua própria profundidade, o outro é atraído pela altura que é o símbolo da liberdade. Eles envolvem-se um ao outro e os seus movimentos contrários fazem os dois turbilhonar. A primeira figura da vida é o aguilhão de Mercúrio e esse turbilhão que ele ativa. É Mercúrio quem faz girar a roda da vida, primeiro freneticamente, depois com um movimento que tem a perfeição do verdadeiro descanso e da paz. O movimento do nosso céu será a sua representação.
  59. As trevas são o poder da morte. Elas são dolorosas. É através da dor que a vida se torna sensível. A vida é definida tal como o ser humano a sente: ela é o sofrimento ou a alegria. Em Deus, ela é a beatitude. Deus quer comunicar essa beatitude, esse é todo o seu desejo. Mas ela não seria sensível sem o teste do sofrimento. Toda a doutrina de Boehme depende dessa verdade. Tornada sensível no fogo do sofrimento, a beatitude será a alegria. A felicidade de Deus está na alegria do ser humano onde ele habita. Para esse ser humano, o Nada tornou-se no paraíso. Essa transmutação é o modelo da grande obra. Segundo o De signatura rerum, o ideal do adepto é o paraíso.
  60. O terceiro arquétipo da natureza eterna é a angústia, nascida da amargura e personificada por Marte. Ele é um com os dois primeiros, ele é o confronto deles. A angústia é a opressão de Saturno e a amargura de Mercúrio. Ela é o sofrimento da natureza, a sua agonia na espera pelo seu verdadeiro nascimento. As dores do parto são uma agonia.
  61. A angústia é o desespero da alma que anseia por nascer. Essa alma busca a Deus, porque é em Deus que está a verdadeira vida. Cristo será entregue a esse desespero. Ele atravessará as trevas da alma original. Boehme evocará a angústia de Cristo no Getsemani. No De signatura rerum, é a Paixão de Cristo que dará a sua verdadeira dimensão à cosmogonia. O paroxismo da angústia será o grito da nona hora: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" É na treva total que este grito se ergue, mas imediatamente a cortina do templo se rasga e a luz sucede às trevas. É quando a angústia está no seu auge que a alegria explode.
  62. A aspereza, a amargura e a angústia representam os avatares do desejo na natureza tenebrosa. Para Boehme, o desejo não é uma simples volição. Ele é a força da natureza que se identifica com o fogo. A natureza não é mais que desejo, ela é o fogo. A alma é a natureza e o seu desejo, ela é o fogo. O ciclo da natureza ou da alma é o ciclo do fogo ao mesmo tempo que do desejo.
  63. No De signatura rerum, Boehme explica como o fogo se acende, como morre no paroxismo da violência e como renasce na luz.
  64. É no quarto grau da natureza eterna que o fogo se acende. Ele é o fogo quente nascido do fogo frio, do fogo que não arde e que é a matéria endurecida por Saturno. Prisioneiro do fogo frio, o fogo quente está em ebulição até ao momento em que se liberta. Ele é a faísca que brilha depois de ter estado trancada na pedra.
  65. O amor é quente, diz Boehme na Aurora. É o amor divino que opera sob o gelo de Saturno. O fogo quente é o fogo do amor que se manifestará na luz. Mas antes disso ele é um fogo terrível. O quarto grau simboliza tanto esse fogo terrível quanto o nascimento da luz. Ele é o Sol angustiado, fonte do calor que consome, e do Sol que expande a vida. O quarto arquétipo da natureza eterna faz aparecer os dois princípios. Ele é também o momento em que eles se separam. O nascimento da luz é a sua separação das trevas.
  66. No quarto grau nós estamos no coração da natureza. O coração de todas as coisas é o centro para o qual elas tendem, porque é nele que elas se realizarão. É a verdade da natureza e do próprio Deus.
  67. É no coração da natureza que o fogo se acende. O fogo é a chama do relâmpago. O relâmpago é o aguilhão inflamado. O relâmpago que sobe é o fogo violento que faz explodir a natureza até ao paroxismo da angústia. Marte personifica a angústia e a extrema violência do fogo.
  68. O relâmpago rasga as trevas e imediatamente morre. Ele próprio é fulminado. O fogo morre e desta vez é o amor que fulmina. O amor estava escondido no fogo. É Vénus que desarma Marte. Vénus é a suavidade que prevalece sobre a violência. Essa vitória renova-se na pessoa de Cristo.
  69. O elemento que simboliza a suavidade é a água. Marte é o fogo, Vénus é a água. Primeiro, Marte e Vénus fogem um do outro, depois unem-se e é então que nasce a luz. A água mata o fogo, mas o fogo brilha na água. A luz é o fogo florescendo na água. O fogo que ilumina a água revela as maravilhas de Deus. Abre-se o livro do mysterium magnum e Mercúrio é doravante o Verbo celeste que articula o seu texto com palavras distintas.
  70. É pelo fogo que as obras de Deus são reveladas. O fogo destrói o impuro e faz resplandecer a pureza que em si era inatingível. O quarto arquétipo da natureza eterna é manifestado pelo relâmpago, mas também pelo arco-íris. Ele é o instante em que aparecem as cores que são o esplendor do Nada. O arco-íris não é apenas um semicírculo, ele é o círculo todo no qual se inscreve a cruz. Ele é a roda da vida que se imobiliza para ser contemplada durante esse instante. Ela girava loucamente e ela era o símbolo das trevas. Agora a vida resplandece no seu centro. A claridade do Nada tornou-se na luz cujo brilho é rico com todas as cores. O brilho da luz é a tintura. Ele é a flor do fogo. A tintura é a beleza e o melhor de todas as coisas. Ela é o remédio universal que o adepto busca e que encontra dentro de si próprio. Ela está no coração da alma universal e da alma humana. Ela é o tesouro, a pérola.
  71. Uma vez que perdeu a sua violência, o fogo é a verdadeira vida que se comunica à suavidade. É assim que Marte se torna na alma de Vénus. Marte é dominador, ele personifica a vontade própria da natureza no mais alto grau da sua exaltação. No entanto, ele é desarmado pela suavidade e humildade de Vénus. Marte morre à sua vontade própria, mas renasce na suavidade, mantendo o melhor de si mesmo. É então que, unido a Vénus, ele é a alma do amor. Ele personifica o desejo realizado no amor. Ele é a vida de Vénus, e é graças a ele que Vénus se manifesta.
  72. Marte é a alma de Vénus, mas Vénus é o coração de Marte: o corpo de luz no qual o espírito se encarnou.
  73. O noivo e a noiva do De signatura rerum representam Marte e Vénus. Para Boehme, a alma é o fogo viril, ela é o esposo. A esposa é a virgem que o esposo teve que encontrar em si próprio para se unir a ela.
  74. A virgem é a amante. Ela também é a mãe, o símbolo da maternidade virginal. Ela é a imagem da Sabedoria que, no ser humano, dá à luz espiritualmente. A natureza eterna é o lugar dessa geração que se realiza na alma humana como na alma universal. Quanto ao cavaleiro que se une à virgem, ele mesmo é a criança, o filius philosophorum. Ele é o embrião de ouro extraído do ventre de Saturno para ser vivificado.
  75. O nascimento desse filho é prefigurado no ciclo primordial. No limiar do tempo, o sétimo grau representa a consumação do tempo e a aurora da eternidade. O corpo celeste, representado nesse grau, será o de Cristo e de todos os eleitos, do qual, a criança gerada no trabalho dos Sábios, é a imagem.
  76. No quarto dia da semana original, o aparecimento do arco-íris anuncia o fim do tempo e o início da eternidade. O adepto do De signatura rerum contempla o arco-íris sobre o qual Cristo está sentado como juiz. A sua contemplação marca o coroamento da obra.
  77. Os três primeiros dias do setenário são uma pré-eternidade. Depois da queda de Lúcifer, eles serão a eternidade do inferno. Mas também fundam o arquétipo do tempo que é a semana primordial.
  78. O sétimo dia simboliza por antecipação a plenitude do tempo. Enquanto essa plenitude não se realiza, o tempo fragmenta a natureza. Os elementos aparecem um após o outro, o que é próprio da sua divisão. No sétimo grau, eles serão apenas um único elemento. Eles serão gerados e revelados simultaneamente. A eternidade da natureza está nessa simultaneidade perfeita. É por isso que a verdadeira revelação é a do sétimo dia. A eternidade realiza-se na unidade, aquela que põe fim à divisão. A eternidade é ela própria a conclusão do tempo, Boehme tem dificuldade em imaginá-la doutra forma.
  79. No sétimo dia, a natureza mantém tudo num único elemento. Ora, esse santo elemento também aparece como o último dos quatro elementos, ao mesmo tempo que como elemento único no qual eles se sublimam. Ele é a terra.
  80. Os quatro elementos aparecem sucessivamente no setenário. O fogo é o primeiro sobre o qual falamos. Mas o fogo não queimaria sem a presença do ar. O sopro que emana da vontade divina é gerado no fogo. Quando ele nasce do fogo, ele é um sopro luminoso.
  81. O ar escapa do fogo, porque ele é o espírito da liberdade. Mas, mesmo assim, o fogo respira-o, porque ele é a vida do fogo. É assim que a natureza eterna respira quando se realiza.
  82. O ar nasce do fogo e gera a água. É na água que o fogo se torna na luz. A água é Vénus, à qual Marte dá um corpo. A terra celeste do sétimo espírito é esse corpo. A terra é o último elemento, ela nasce da água. Celeste ou terrestre, a terra é o elemento de todos os corpos.
  83. A natureza eterna gera-se pelo aparecimento sucessivo dos quatro elementos que constituirão a nossa natureza temporal. É nesse processo que ela é o seu modelo. Ela é ao mesmo tempo a imagem de Deus. Ela é o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O Pai é o fogo. O Filho é o coração do Pai revelado na luz. O Espírito Santo é o sopro luminoso exalado pelo fogo e que se comunica ao retornar para ele: ele é a respiração de Deus.
  84. Esta é uma Trindade que tinha motivos para alarmar os pastores! Em si, a Divindade não é a Trindade. É a manifestação da Divindade na natureza que faz aparecer uma estrutura trinitária. De qualquer forma, Deus não é uma Trindade de pessoas como entendem os teólogos, protestantes ou católicos. Deus, diz Boehme, só é uma pessoa em Cristo. Ora, para o teósofo, Cristo é o ser humano segundo as suas duas naturezas.
  85. A Trindade de Boehme chama-se ternarius sanctus. Este é o nome que ele dá ao Espírito Santo porque toda a natureza divina está nele. O Espírito Santo é o Espírito de Deus que fluirá nos corações. Será a graça que se encarnará na fé do ser humano.
  86. Na alma universal e na alma humana, o Pai é fogo. Ele é evocado como o Deus escondido sob as trevas. O Pai é a chama devoradora mencionada nas Escrituras. Mas, na primeira fase da natureza eterna, esse fogo é percebido como um veneno e é o princípio das trevas. Deus, Pai das trevas!
  87. De fato, essa Divindade será o falso Deus do ser humano não reconciliado. O ser humano que não encontrou o Deus de misericórdia identifica Deus e o diabo, porque sofre e, como os teólogos defensores da predestinação, faz de Deus o autor do mal. Pelo contrário, os seres humanos que acolherem o Espírito de Deus verão o Pai na luz do Filho. Eles contemplarão o coração de Deus. Eles conhecerão o nome de Deus, que é o amor.
  88. No simbolismo da natureza eterna, esta imagem de um Deus que seria apenas um fogo devorador funda-se ao mesmo tempo que as trevas. O Pai é o primeiro princípio. O Pai é objetivado como sendo o princípio das trevas. Na verdade, é a cólera de Deus que se manifesta neste primeiro nível. A cólera de Deus só será justificada mais tarde quando a criatura ser tornar culpada do mal. No entanto, ela preexiste ao mal e funde-se com ele. Nas trevas do primeiro princípio, o sofrimento causado pela angústia já é o inferno.
  89. Boehme objetiva no ciclo duma alma universal a revelação que ocorre quando Deus nasce no ser humano. Esta revelação é progressiva e o Deus oculto está incluído nela. Ele é o Pai que não se revela sem o Filho. É o nascimento do Filho que Boehme evoca. Acontece na trevas e na dor.
  90. O problema é que Boehme decompõe a Trindade. Ele faz surgir o espectro do Pai antes da figura luminosa do Filho. Sem o Filho, o Pai seria apenas um "vale escuro", lemos na Aurora. O Pai seria o inferno. Ora, aquilo que parece ser uma hipótese impossível é objetivado no primeiro princípio da natureza eterna.
  91. A imagem do Deus terrível é perpetuada com as trevas, que são uma das duas fontes da natureza. A imagem de Deus nunca será gratuita. Ela é o espelho do ser humano. Quando o ser humano nasce no princípio da luz, a sua própria imagem é a imagem do verdadeiro Deus. Antes desse nascimento, o ser humano só percebe a cólera de Deus. Somente o ser humano nascido duas vezes sabe que a cólera de Deus não é Deus.
  92. É o próprio ser humano que será a imagem de Deus de acordo com um dos dois princípios fundados na natureza eterna. Tal ser humano, tal Deus. Boehme parafraseia o Salmo 18, seguindo a tradução de Lutero, para dizer que Deus é santo com os santos, perverso com os perversos.
  93. É o segundo princípio que é o céu e a carne dos anjos. É por isso que as criaturas celestes são, nos seus corpos, a imagem do verdadeiro Deus, aquele que se revela na luz. Mas cada corpo, diz Boehme, representa o resultado dum combate. O corpo dos anjos não é exceção. A luz é sempre uma vitória sobre as trevas. Mesmo em Deus, Boehme não a vê de outra maneira. Ora, se a luz prevalece, as trevas não serão abolidas. Na "Divindade pura" não há luz nem trevas. Na natureza eterna elas são co-eternas. Elas estarão juntas em todas as coisas. Às vezes a luz estará escondida sob o invólucro das trevas, outras vezes a noite estará enterrada sob o dia.
  94. As trevas estão presentes no corpo dos anjos, mas a luz torna-as invisíveis e inativas. Elas estão adormecidas, porém podem tornar-se ativas novamente como nos três primeiros dias do ciclo primordial. Então as trevas prevalecerão sobre a luz. Foi o que aconteceu com o mais belo dos anjos, Lúcifer.
  95. Lúcifer era belo e poderoso. Ele reinava sobre o mundo celeste. Ele quis aumentar a sua glória reativando nele o fogo original da natureza. Não contente com contemplar-se em Deus, quis recriar-se usurpando o poder de Deus. Ele quis ser o mestre absoluto da natureza, nos dois princípios.
  96. A dinâmica da natureza empurra-a para a perfeição: das trevas para a luz. Nascido na luz, Lúcifer seguiu o caminho inverso. Ficou fascinado pelo fogo original que descobriu no seu próprio fundo. Como Prometeu, quis dominar o fogo. Ficou prisioneiro dele, vítima da sua vontade de poder.
  97. Lúcifer tinha sido entronizado por Deus para governar o mundo celeste. Mas caiu. Foi banido para o inferno. Tornou-se no mestre do inferno, mas subordinado a Deus. Foi o ser humano que foi estabelecido no trono de Lúcifer, porém o príncipe caído não deixou de empregar os seus esforços para impedir que o seu rival permanecesse lá. O inimigo do diabo é o ser humano eleito por Deus.
  98. Foi assim que Adão foi criado e com ele o nosso mundo ao qual Boehme chama de terceiro princípio, no seio do qual os dois primeiros princípios, as trevas e a luz, estão igualmente ativos.
  99. Adão foi criado com dois corpos, um celeste e outro terrestre. Apenas o primeiro era visível, porque a sua luz fazia resplandecer o corpo terrestre e a luz impedia que o corpo terrestre fosse visto na sua nudez. Ora Adão adormeceu, foi essa a sua culpa: ele parou de contemplar a luz pela qual Deus se revelava no mundo que era o seu corpo. No seu sono, Adão foi tentado pelo demónio que, excitando a sua imaginação, lhe apresentou a imagem do seu corpo terrestre. A partir desse momento, Adão identificou-se com esse corpo. A partir de então passou a ser apenas um ser humano terrestre. Levado, também ele, pela sua vontade de poder, sucumbiu à tentação do demónio. A sua vontade própria foi exaltada, tornou-se no pecado.
  100. Adão é, com o pecado, toda a nossa natureza. No entanto, ele será redimido na pessoa de Cristo, o segundo Adão. Cristo, por sua vez, será tentado pelo diabo, mas prevalecerá. Ao contrário de Lúcifer e do primeiro Adão, Cristo renunciará totalmente à sua vontade própria. É assim que o ser humano, unindo-se a Deus, se torna Deus, mas em Deus.
  101. É no segundo Adão que se realiza a maior perfeição. O ser humano é mais perfeito do que o anjo, porque o mais belo deles, uma vez caído, não se pode voltar a levantar. O segundo Adão supera o primeiro, tal como ele era antes da sua queda. De fato, na sua humanidade, ele teve a experiência do mal e triunfou. A humanidade celeste, à qual Boehme atribui o maior valor, é a do Cristo ressuscitado, porque ela está enriquecida com todo o sofrimento do ser humano.
  102. Cristo é provado por Deus, este é o sentido da sua Paixão. Depois dele, os seres humanos serão submetidos, em espírito, à mesma provação. Imitando a Cristo, morrerão para eles próprios para renascerem na plenitude do ser humano habitado por Deus. Cristo inaugurou a teofania representada pelo setenário da natureza eterna. Para Boehme, Cristo é o verdadeiro começo.
  103. Tal como é evocada por Boehme, a tentação a que Cristo foi submetido é a prova do mal. Cristo conheceu realmente o mal. Ele não se contentou em assumir o mal de uma forma legalista, para o cumprimento da pena pelos crimes cometidos pela humanidade. Por meio de Cristo, o mal manifestou-se em toda a sua medida. O desejo de se manifestar anima toda a vida, boa ou má, o mal como o bem. Para que o mundo seja renovado, é preciso que todo o mal seja consumado, ou seja, plenamente manifestado. Ele foi-o no momento da paixão de Cristo, não apenas na malignidade dos seus algozes, mas também no ser humano pecador cujo hábito ele revestiu.
  104. No décimo primeiro capítulo do De signatura rerum, vemos Cristo comparecer diante de Pilatos. Ele está vestido com o manto púrpura que os seus inimigos lhe deram para troçarem dele. Ora esse manto representa todo o pecado do mundo e é ele, Cristo, que se torna na figura do pecado diante do Pai. Antes de ser glorificado, Cristo é julgado segundo a vontade do Pai. Cristo é entregue à cólera do Pai. Os carrascos são apenas os executores da justiça divina.
  105. Para Cristo, conhecer o mal é beber o cálice da amargura. É oferecer-se ao Julgamento carregado com todos os pecados do mundo. É o Pai que julga Cristo, não é Pilatos. Só quando Cristo tiver sido julgado é que o Julgamento lhe será restituído.
  106. O leitor do De signatura rerum saberá que Deus quis o conhecimento do bem e do mal. Boehme parece dar razão ao diabo. Lembremo-nos da promessa da serpente do Génesis: "Os vossos olhos abrir-se-ão e vocês serão como Deus, conhecendo o bem e o mal".
  107. Tudo depende da qualidade do desejo. O desejo é culpado quando o ser humano quer exaltar-se no fogo original. Esse ser humano é punido. Fica prisioneiro desse fogo que, para ele, se torna no inferno. Não conhece nada mais do que o mal.
  108. O próprio Cristo é entregue a esse fogo, mas segundo a vontade do Pai, à qual ele sempre obedece. Cristo renunciou totalmente a si próprio. Na sua humanidade, ele é apenas um com a vontade de Deus. Como a vontade do Pai, ele atravessa o fogo para emergir com um corpo de luz. O ciclo da natureza eterna realizou-se nele, não apenas em espírito, de maneira ideal, mas na realidade do ser humano criado.
  109. Para Cristo, conhecer o mal não é a forma de exercer uma vontade de poder: Cristo é o símbolo do rebaixamento total, ele esvaziou-se de si próprio. Nem é limitar-se a apreendê-lo intelectualmente. O verdadeiro conhecimento só é adquirido pela experiência, isto é, o sujeito conhecedor deve ter feito frutificar nele, na sua carne, o objeto conhecido. É através do sofrimento que Cristo manifesta o mal. É através do sofrimento que ele triunfa sobre o mal. A sua aceitação do sofrimento, em aquiescência à vontade do Pai, é a vitória do amor. É pela sua morte que ele prevalece sobre a morte.
  110. Entendemos porque é que o Cristo supliciado não poderia ser um simples simulacro. Para os gnósticos, o Cristo que morreu na cruz não era o verdadeiro. Para Schwenckfeld e Weigel, ele também era apenas uma aparência do Ser Humano celeste. Para Boehme, Cristo era um ser humano real que Deus testou para gerar nele o seu Filho.
  111. É pela virtude do sofrimento que o mal é "a causa do bem", segundo a expressão de Boehme. É a doença que é “o médico”! Isto significa dizer que o contrário cura o contrário? Não é o semelhante que cura o semelhante? Na verdade, os contrários não fazem nada mais senão chocarem entre si e é por isso que eles são o mal.
  112. Quando os espíritos da natureza são unidos, no sétimo dia, eles não são mais os contrários, porque no amor cada um se tornou no outro. Pelo contrário, enquanto cada um se exalta, todos são contrários. É a contrariedade deles que é o mal. Ela será abolida quando todos encontrarem a sua medida certa. É o excesso que é a causa da contrariedade e do mal.
  113. No nosso mundo, a contrariedade está em todas as coisas, mas sem ela, nenhuma se tornaria verdadeiramente perfeita. Não há salvação sem combate! A verdadeira saúde é aquela que se saboreia ao sair da doença.
  114. Falando da medicina do corpo, Boehme comenta incidentalmente que há sujeitos que nunca adoecem. Ora não é para essa categoria de pessoas saudáveis que ele escreve. Em todo caso, no que diz respeito à medicina da alma, que é aquela que lhe interessa, todos os seres humanos estão doentes, porque o pecado de Adão degradou a natureza toda. É toda a natureza que está doente.
  115. Deus é o médico que cura o ser humano enfermo do pecado. Então o sofrimento transforma-se em alegria, é nesse sentido que o mal se transforma no bem. É sobre essa transmutação que nos instrui o De signatura rerum.
  116. No entanto, apenas o ser humano curado é capaz de dar um sentido ao mal. Só ele sabe que o mal não existe senão por causa do bem. Isso é verdade não apenas para o ser humano, mas também para todas as obras divinas. Ora, só o ser humano é capaz de compreendê-lo, mas na condição de que o tenha experimentado na sua carne. Se Deus prova o ser humano com muita crueldade, é para fazer brotar nele a alegria eterna. Deus age de acordo com o seu amor, usando os poderes do mal, que o ser humano sente como sendo a sua cólera.
  117. Sem o mal, não haveria o bem, nem a luz sem as trevas. Lembremo-nos, Boehme coloca-se na perspectiva do ser humano que recebe a revelação. O seu Deus é o Deus que nasce para o ser humano e no ser humano. É o Deus revelado, ou melhor: que se revela. Em si mesma, a Divindade não é mais boa do que má, não é mais luz do que trevas.
  118. Do mal nasce o bem. Isto não significa que o mal seja a panacéia! Se o veneno cura, é porque o médico o purgou: ele fez com que o veneno perdesse a sua violência. Antes de administrá-lo, o médico cura o veneno.
  119. Deus não cura unindo os contrários como tais, o bem e o mal, a luz e as trevas. Pelo contrário, ele separa-os cortando o mal. Quando o veneno cura, ele já não é mais o mal. A alquimia é a arte das separações. Deus é o Separador.
  120. É unindo os semelhantes que Deus cura, é isto que o autor do De signatura rerum quer mostrar. Cristo é, por excelência, a humanidade curada por Deus. A cólera do Pai, para o ser humano a quem ela golpeava, identificava-se com os carrascos que eram o instrumento dela. Para esse ser humano, ela era o mal. Ora, depois da sua cólera ter sido desarmada, é pelo seu amor que o Pai ressuscita Cristo. Em Cristo, o amor de Deus une-se ao amor que, partindo do coração do ser humano, vem ao seu encontro: o semelhante une-se ao semelhante.
  121. O que Deus médico faz reviver no ser humano é a luz que deixou de brilhar na pessoa de Adão depois da sua falta, mas que, no entanto, permanece nas profundezas ocultas da alma. Assim, a luz de Deus atua sobre a luz no ser humano, o semelhante sobre o semelhante.
  122. A luz que Adão possuía em si próprio extinguiu-se logo que ele se identificou com o ser humano terrestre que estava nele. A sua alma entenebrou-se, mas antes mesmo de ser expulso do paraíso, a voz de Deus depositou nele uma partícula de luz que era uma semente e que permaneceria sepultada na humanidade até ao momento em que a voz do anjo a fizesse frutificar na seio de Maria. Boehme cita abundantemente o “proto-evangelho” de acordo com Génesis 12,15. Deus diz que a posteridade da mulher esmagará a cabeça da serpente. Na versão de Lutero, é a palavra Same que significa a descendência. Também tem o significado de semente. Este é o significado que lhe é dado por Boehme.
  123. É a semente do amor que Deus faz elevar no ser humano. É assim que Deus médico cura o ser humano do pecado. No ser humano, Deus cura toda a natureza atingida pela maldição que puniu Adão. O adepto deve ajudar a levantar essa maldição trabalhando em si mesmo antes de operar nas plantas.
  124. Boehme parafraseia a epístola aos Romanos para falar da natureza sofredora: a criação geme na espera da revelação dos filhos de Deus. A pessoa do adepto será, no seu próprio fundo, o teatro dessa revelação que deve libertar a natureza da servidão. A verdadeira liberdade é essa libertação. Ela é conquistada sobre a servidão. Ela não é mais a gratuidade do Nada.
  125. Nós percorremos todo o ciclo da manifestação divina. Ainda teríamos muito para dizer sobre a criação do nosso universo a partir dum segundo mysterium magnum, sobre o Verbo criado que é a sua alma e que faz prosperar o cardo assim como a rosa, sobre o Enxofre, o Mercúrio e o Sal. Seria preciso um livro inteiro para cobrir todos os assuntos do De signatura rerum. Mas é a leitura do texto de Boehme que mais importa. Quisemos conduzir o leitor até ele e esperamos que a nossa tradução permita descobrir as suas riquezas.
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