A Sabedoria em Jacob Boehme - 11. Conclusão

  1. O que representa, essencialmente, a Sabedoria na teosofia de Boehme?
  2. Depois da primeira obra, a Aurora Nascente, a Sabedoria torna-se na pedra angular de todo o edifício. Como resumir a sua função?
  3. A Sabedoria é a permanência da transcendência divina através da odisseia do Espírito e do Verbo.
  4. Na Aurora, a única transcendência é a do Deus oculto que Boehme, no início do ciclo septiforme, chama de Pai. Esse Deus oculto não é, de forma alguma, o símbolo de uma claridade primeira. É um Deus tenebroso, que é apenas um fogo devorador. É o Pai imaginado sem o Filho. Esse Pai é apenas um vale escuro.
  5. Nada parece preexistir às trevas. Porque, então, a luz quer brilhar na noite? A resposta só virá mais tarde. É a Sabedoria que será a causa ideal de toda a manifestação divina. Ela personificará o projeto divino estabelecido antes do ciclo septiforme.
  6. É a Sabedoria que preside à manifestação divina. Mas ela não é, de forma nenhuma, alienada durante o seu desenrolar. A Sabedoria personifica um propósito que se realiza. Ora, ela é a inteligência soberana desse propósito. Ela não é a sua executora.
  7. A Sabedoria será ocultada e parecerá prisioneira das trevas. No entanto, as trevas nunca a dominarão. A Sabedoria comunicada-se sob a roupagem da natureza que gera as trevas, mas permanece perfeitamente pura. A sua virgindade é a sua integridade. Isto significa que mesmo quando a Sabedoria habita numa substância perfeita, não se confunde com ela. A pureza da Sabedoria, ou a sua virgindade, é a sua transcendência. A Sabedoria permanece transcendente mesmo quando a criatura a recebe no seu fundo. Ela une-se com a natureza perfeita, mas essa união é sem confusão. Representa Deus manifestando-se na natureza, mas que nunca se funde com ela, qualquer que seja a sua perfeição.
  8. No entanto, essa transcendência é de fato a de um Deus que se faz imanente. Deus torna-se primeiro imanente a si mesmo, estabelecendo-se na sua própria esfera, anterior à natureza eterna. Depois, Deus é imanente à alma eterna que emana dele. Finalmente, Deus está presente na alma humana. A Sabedoria personifica essa imanência de Deus ou a sua presença. A Sabedoria é a comunicabilidade de Deus.
  9. Somente por si próprio, tomado como o Absoluto, o Ungrund nunca se comunicaria. Sem a Sabedoria, a Divindade pura nem sequer é o Espírito. A Sabedoria aparece no momento em que a Divindade se encontra no seu Verbo e no seu Espírito. A Sabedoria representa essa Divindade que se encontrou e que de fato se tornou Deus. Ora, uma vez que a Divindade se encontrou, isto é, que ela se estabeleceu em si mesma, que tomou posse de si mesma, o seu único pensamento é o de se manifestar. A Sabedoria é esse pensamento de Deus.
  10. O Espírito e o Verbo são os atores da manifestação divina. A Sabedoria permanece o princípio e a finalidade.
  11. O Espírito é, em si mesmo, inatingível. Em si mesmo, ele é pura volatilidade. Para se comunicar, ele tem que se fixar e que se encarnar. A Sabedoria é a alma dessa encarnação. No entanto, ela não é, de forma nenhuma, afetada pelo drama que se segue. O Espírito às vezes aparece como um fogo escuro, às vezes como um fogo claro, enquanto que a Sabedoria é, eternamente, apenas claridade.
  12. Da mesma forma, o Verbo diversifica-se segundo os planos que se sucedem. Primeiro, ele é o Verbo eterno. Nessa altura, ele está unido com a Sabedoria. Mas em seguida, ele é o Verbo emanado, e depois o Verbo criado. Por fim, reencontramos a transcendência, e o Verbo é de novo unido à Sabedoria. Assim, o Verbo desposa as fases do devir, enquanto que a Sabedoria eterna é imutável. A Sabedoria é a alma das transmutações, mas ela permanece absolutamente ela mesma.
  13. A Sabedoria não tem a ambiguidade do mercúrio, que às vezes é veneno, e às vezes é elixir. A vida eterna, da qual ela é a fonte, não é a vida que alterna com a morte. Esta vida imperecível só surge para além da morte. A transcendência está nesse além. É por isso que Sofia só dá ao fiel a sua recompensa suprema, que é a pérola ou a coroa do cavaleiro vitorioso sobre a morte, quando ele realmente deixou esta terra. Certo, logo que se converte, a Sabedoria entra no santuário da sua alma para aí se estabelecer. O além é antecipado, o que é a essência da experiência mística. No entanto, a própria Maria só se une verdadeiramente com a Sabedoria depois de deixar a sua estadia aqui embaixo, embora ela tenha sido o trono da Sabedoria durante a sua vida.
  14. A vida imperecível não pode ser dividida segundo uma alternância. A sua integridade é atestada pela virgindade da Sabedoria. Ora, esta virgindade é em si um símbolo da transcendência. Ela significa a simplicidade do Deus transcendente.
  15. A simplicidade é sinónimo de plenitude. Em Boehme, não há totalidade exceto a do dia. A virgindade da Sabedoria representa uma plenitude, porém ela só se manifesta quando as trevas foram totalmente eliminadas. A virgindade de Sofia é uma pureza absolutamente exclusiva. A transcendência está no seu reinado sem partilha.
  16. Não devemos ler Boehme sonhando com uma "integração" que faria a soma da luz e das trevas. Sofia não é o monstro hermafrodita na qual os opostos se reuniriam. A totalidade que ela representa não é a reunião do dia e da noite. A plenitude da Virgem eterna só aparece quando a luz e as trevas se separam definitivamente. Essa separação é a finalidade da grande obra cujo simbolismo Boehme transpõe para o nível da realização universal.
  17. A alternância entre a luz e as trevas está envolvida no projeto divino personificado pela Sabedoria. No entanto, a Virgem eterna permanece acima de todas as vicissitudes. Da mesma forma, a dualidade dos sexos está no desígnio de Deus, assim como a falha da qual ela surge. A Sabedoria, quanto a ela, permanece pura. Embora ela seja apresentada como esposa, quando se une ao fogo viril da alma, ela não é em si nem mulher nem homem. A Sabedoria comanda o projeto divino e representa a sua perfeita objetivação, no entanto ela não é afetada pelo seu desenrolamento.
  18. Nenhuma virgem mortal é pura, diz Boehme falando de Maria, mãe de Cristo.150 Isto significa que nenhuma criatura mortal é virgem. Nenhuma mulher é virgem segundo a sua condição mortal, assim como nenhum homem é puro, se for apenas um homem. A verdadeira virgindade está além da morte. Para Boehme, Maria foi concebida como qualquer um de nós e só se tornou virgem quando, abençoada pelo anjo, se tornou Maria cheia de graça. Esse momento é o do segundo nascimento que se anuncia pela primeira vez numa criatura humana quando a voz do anjo penetra no seio de Maria. A Sabedoria estabelece ali o seu trono, mas o seio abençoado de Maria não é o seu ventre de mulher mortal. É um céu que se abre no seu fundo, mesmo enquanto ela ainda se encontra aqui embaixo. Ora, esse céu, por mais imanente que seja em relação ao corpo terrestre, representa um além segundo o seu lugar próprio que se define como um estado do ser. Para alcançar esse além, é necessária uma rotura absoluta de nível.
  19. O céu interior que a Sabedoria habita está localizado, de acordo com a nossa localização, dentro do recinto do corpo grosseiro. No entanto, ele é absolutamente distinto da carne mortal. Mas a Sabedoria, que está presente na substância desse céu, é ela própria transcendente a ele. A rigor, a Sabedoria permanece transcendente à substância preciosa na qual ela se envolve para se comunicar com a criatura e da qual faz o seu corpo.151 A Sabedoria une-se a esse corpo, mas é uma união sem confusão, porque ela é o seu Espírito.152 A Sabedoria não se confunde com a natureza perfeita a que nós podemos chamar de sobre-natureza. A eternidade da Sabedoria é superior à de qualquer natureza.
  20. É verdade que a linguagem de Boehme, às vezes, nos faz esquecer essa distinção. Ele identifica o corpo do sétimo grau do ciclo primordial com a Sabedoria que irradia nele. No entanto, ele sublinha a diferença entre a Sofia e o corpo precioso com o qual ela se reveste. Por si só, a substância (Wesen) não seria nada.
  21. Da mesma forma, a luz representa a Sabedoria. Ora, a Sabedoria é a alma da luz. Aos olhos da Sabedoria, a luz, mesmo a divina, é apenas o seu corpo.
  22. As noções de corpo e de espírito são relativas. A Sabedoria é o corpo de Deus. A luz é o corpo da Sabedoria. Em relação a Deus, a Sabedoria é apenas um corpo. Em relação à luz, ela é espírito. Todo espírito é um corpo em relação com outro espírito ao qual está subordinado e o qual manifesta. No entanto, este mesmo corpo é espírito para outro corpo que ele comanda e que o manifesta. Assim, a Sabedoria é um corpo com relação a Deus, mas esse corpo é transcendente em relação a um outro corpo do qual ele é o espírito e do qual a luz é a substância.
  23. A Sabedoria é o corpo de Deus. No entanto, ela é o espírito das obras divinas, que ela anima, e que aparecem como sendo o seu próprio corpo, quando elas atingem a sua perfeição última. Essas obras são objetivadas num corpo de luz que é o corpo da Sabedoria.
  24. Em relação a esse corpo, a Sabedoria é como Deus. A Sabedoria é o duplo de Deus. Ela é Deus na medida em que a Divindade se oferece ao nosso conhecimento e se conhece a si própria. É por isso que a Sabedoria é a plenitude da gnose. Por mais humilde que ela seja, não há gnose exceto nela. Lúcifer perdeu-se por desprezá-la. Não se consegue apreender o Infinito sem essa preciosa mediadora.
  25. A Sabedoria representa um Deus que está entre o Absoluto e nós. Esse Deus permanece transcendente, porém ele é conhecido e conhece-se a si próprio pelas suas obras manifestadas em nós. A Sabedoria, seriamos tentados a dizer, é a Face conhecida de Deus. Ora, o Deus desconhecido não tem rosto. A Sabedoria é, portanto, a única Face de Deus. Ela é a Face de Deus que Moisés não podia ver, mas que se revela à humanidade renovada. No entanto, ela permanece transcendente para aqueles onde ela não habita e que ainda são contemporâneos de Moisés, mesmo se, segundo a cronologia da história, eles nasceram depois de Cristo.
  26. A Sabedoria une-se aos fiéis que, nas suas existências singulares, chegaram à consumação do tempo. Para esses, a história do mundo chegou ao fim. Eles já estão além.
  27. Para esses justos, a transcendência é luminosa. Ela é suave, ela é sinónimo de beatitude. Para os outros, a transcendência é apenas terror. Ela é sentida apenas como o medo dos castigos eternos. Para aqueles em quem a Sabedoria ainda não habita, a transcendência é vivida como o inferno.
  28. Para as almas que estão unidas à Sabedoria, o Deus que habita uma luz inacessível, esse Deus que nenhum homem viu ou pode ver,153 tornou-se no Emanuel, Deus em nós. Esta união é antecipada quando o fiel nasce a partir do alto durante a sua existência terrestre. No entanto, ela só é possível porque os dois estados do seu ser, um escuro e o outro luminoso, são absolutamente separados. A transcendência está nessa separação. Quando a Sabedoria habita no ser humano, só habita na sua pessoa transcendente, completamente desvinculada da sua individualidade tenebrosa. E é nesse lugar privilegiado que o próprio Deus se torna verdadeiramente numa pessoa. Deus tornou-se numa pessoa em Cristo, mas todos os fiéis, cuja fé se encarnou na Sabedoria, são Cristo. Segundo a sua carne celeste, cada um deles é o templo de Deus habitado pela Sabedoria.

Notas

  1. Vom dreyfachen Leben, VI, 70. [  ]
  2. Von den drey Principien, XIV, 72 e XXII, 70. [  ]
  3. Ibid., XXII, 25. [  ]
  4. 1 Timóteo VI, 16. [  ]
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