Da Assinatura das Coisas – 16.2. Do Livre Arbítrio

  1. Tudo o que vem da vontade eterna, os anjos e as almas, permanece numa medida igual entre o bem e o mal, no livre arbítrio, como o próprio Deus. O desejo que supera o outro na criatura no momento da qualificação confere à criatura a sua qualidade; assim como uma vela produz a chama e que da chama sai um ar, que o fogo atrai a si e que volta a sair novamente; quando este espírito sai do fogo e da luz, ele livra-se deles e assume a propriedade que aceita.
  2. O primeiro mistério da criatura é o universal; o segundo, o seu espírito, é a sua vontade própria. Cada anjo possui o seu espírito próprio, vindo do seu mistério próprio, este espírito tenta a Deus e põe à prova o mistério universal que, então, o aprisiona, como aconteceu com Lúcifer. Ele tinha em si a fúria e o amor; porque é que o espírito nascido desses dois princípios, à imagem do Espírito de Deus, não permaneceu na obediência e na humildade, como uma criança diante da sua mãe?
  3. Tu respondes: ele não pôde. Está incorreto. Um espírito está em equilíbrio no lugar onde foi criado e ali é livre; ele é um com o espírito universal, embora possa criar nele como lhe apraz um desejo no Amor ou na Cólera; ele recebe no Grande Mistério a propriedade do desejo que ele emite. O poder gerador está em Deus, porque não estaria na criatura feita à Sua imagem? A criatura é dominada pela propriedade que ela evocou.
  4. A vontade de Deus para com a criatura é uma, segundo aquela das propriedades do Mistério eterno que foi apreendido. Lúcifer foi bem concebido como um bom anjo, mas a sua vontade própria despertou nele a mãe eterna para dominar por seu intermédio, o espírito da vontade é o ponto de partida, ele é livre, ele faz o que quer.
  5. Proveniente dos dois princípios, ele escolheu a fúria; esta exaltou-se e arrastou-o com ela: tal é a queda de Lúcifer e dos maus.
  6. A razão cita a Escritura: "Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos" (Mateus, 22, 14). Idem: “Eu amei Jacó e odiei Esaú”. Idem: "Um oleiro não pode fazer o que quiser com o barro?" (Romanos, 9,13-21). Há poucos eleitos porque eles não querem; se eles colocam a sua vontade na Cólera, eles tornam-se filhos dela; contudo todos eles são chamados à regeneração em Adão e em Cristo; o Amor apenas elege o seu semelhante e a porta está aberta no entanto também para os ímpios, apesar deles estarem aprisionados na Cólera; o ser humano tem dentro de si a morte, pela qual pode escapar ao mal, mas não o diabo, porque ele foi criado na mais alta perfeição.
  7. Quanto a Jacó, ele representava a linhagem de Cristo, e Esaú a queda de Adão; o primeiro só foi prometido à humanidade para apagar a culpa do segundo e libertá-lo da Cólera. Não sei se Esaú permaneceu pecador; a Escritura não o diz: a bênção foi-lhe dada; ele desprezou-a; ela foi então transferida para Jacó, isto é, para Cristo, que voltou a abençoar mais tarde Esaú e Adão: a porta da graça foi-lhes assim aberta.
  8. Jacó-Cristo disse o seguinte, quando entrou na alma e na carne de Adão: "Vinde a mim, vocês todos que estais cansados, e eu vos aliviarei" (Mateus, 11,28). Idem: “Eu vim para chamar o pecador ao arrependimento”, não a Jacó, mas a Esaú que precisa; quando este último responde ao apelo, Cristo diz: "Há mais alegria no céu por causa dele do que por noventa justos que não precisam de penitência" (Lucas, 15,7). Há, de fato, mais alegria para o pobre pecador que entra na morte do pecado.
  9. Mas quem são os justos? Em Adão, todos nós nos tornamos pecadores. Os justos são aqueles que compreenderam a linhagem de Cristo na humanidade; não que não pudessem cair em Adão, mas foram escolhidos pelo espírito de Cristo no ponto da roda onde o Amor e a Cólera se equilibram. Foi assim com Jacó, Isaque e Abel; a sua linhagem teve que instruir a de Caim, Ismael e Esaú, para tirá-los da Cólera, para quebrar o aguilhão do diabo pelo Amor; se, portanto, eles quiserem converter-se e entrar na morte de Cristo, podem ser eleitos pela Graça.
  10. Porque Jacó foi abençoado em vez de Esaú? Nele estava escondida a semente de Abraão e de Adão, por meio da qual a bênção devia descer sobre Esaú, o primogénito; porque é na nossa carne e no nosso sangue que Cristo tem que nascer para que a semente da mulher possa esmagar a cabeça da serpente.
  11. Ele tem que aplacar a cólera na humanidade, não por um sacrifício propriamente dito, mas pelo abandono ao Amor; Jacó-Cristo tinha que saciar a sede de Esaú com o seu sangue para que este último se tornasse num Jacó em Cristo. Quando Esaú não quer reconhecer a antiguidade de Jacó, é Adão que não quer aceitar a Cristo, porque teria que morrer para a carne pecaminosa; é por isso que Esaú combateu com o Adão terrestre contra Jacó.
  12. Quando Jacó veio ao seu encontro com presentes (Génesis, 33,10-11), é Cristo que se oferece à humanidade com o seu amor; Esaú chorou nos braços do seu irmão, foi Adão quem se arrependeu nele do seu projeto fratricida; o Amor transmite a compaixão para que se abra uma porta de misericórdia aos filhos de Adão; e, mergulhando na morte, quebra a Cólera e traz a graça até ao pobre pecador.
  13. Este último tem que, portanto, entrar na morte por Cristo, para que o sangue divino o purifique e o ressuscite de novo como filho de Deus.
  14. Cristo chama-nos à sua morte; e as duas sementes, a da mulher e a da serpente, lutam no pecador; e aquela das duas que triunfa gera o filho. O livre arbítrio pode, portanto, passar por uma das duas portas. Muitos dos que pertencem à linhagem de Cristo são levados para o mal pelo desejo; eles são chamados, mas não resistem à prova; eles têm que sair do pecado e ressuscitar com Cristo. Aquele que aceita Deus-Cristo, não somente com a boca, mas com toda a sua vontade, será eleito. A ciência não apreende esta escolha, mas sim o desejo profundo e a rotura do mal.
  15. O que a razão sabe da eleição da Graça não é suficiente; Adão foi bem eleito; se um galho murcha, a culpa não é da árvore que envia a sua seiva indiscriminadamente para todos os seus ramos; mas se o rebento cresce na sua vontade própria, ele é comprometido pelo fogo do Sol antes de poder refrescar-se na seiva natural. O ser humano é corrompido da mesma maneira; para que Deus lhe dê a sua graça, ele tem que fazer penitência; mas a sociedade e o diabo conduzem-no na via ímpia até que ele esteja intimamente preso na Cólera; o trabalho é então muito mais difícil. É assim que a graça passa por cima da sua cabeça, a menos que ele se torne piedoso novamente.
  16. Muitos são chamados, mas não são capazes de receber a graça por causa da sua má vontade; é por isso que está dito: "Nós tocamos flauta e vocês não dançaram, etc." (Mateus, 11,17), e ainda: “Ó Jerusalém, quantas vezes eu quis reunir os teus filhos, etc.” (Mateus, 23,37); não é dito: "Tu não pudeste", mas "Tu não quiseste"; Deus não dará a sua pérola aos porcos, mas àqueles dos seus filhos que se aproximarem dele.
  17. Quem, portanto, acusa a Deus, despreza a Sua misericórdia, que Ele mostrou pelo género humano, e pendura o seu julgamento ao seu próprio pescoço.
  18. Eu representei fielmente, ao leitor, o que o Senhor me mostrou: se ele se olhar neste espelho, interiormente e exteriormente, ali encontrará a sua utilidade. É uma porta muito larga aberta para o Grande Mistério. As frases não servirão; é a própria experiência, mesmo nas coisas naturais, que beneficiará o pesquisador.
  19. Porque os lírios florescerão nas montanhas e nos vales até aos confins da terra. Quem procura encontra. Amém.

Fevereiro de 1622.

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