Teosofia Prática - Anexo Da Compleição

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As quatro Compleições ou Temperamentos, obra de arte histórica colorida.
Aqui, a cabeça de Cristo está rodeada por quatro figuras masculinas, que são personificações das quatro Compleições ou Temperamentos.
As quatro Compleições são geradas pelo excesso de um dos quatro Humores, ou fluidos corporais essenciais: a bile negra (homem melancólico, no canto superior esquerdo), o sangue (homem sanguíneo, no canto superior direito), a fleuma (homem fleumático, no canto inferior direito) e a bile amarela (homem colérico, no canto inferior esquerdo). Pensa-se que o excesso de um dos humores levam à doença, mas que podem ser corrigidos. Cristo representa o equilíbrio perfeito entre os quatro Humores.
Esta ilustração é originalmente do Livro da Guilda dos Barbeiros-Cirurgiões de York, que foi impresso no século 16 em York, Inglaterra.


A palavra "compleição" é derivada do latim tardio complexi, que inicialmente se referia em termos gerais a uma combinação de coisas e, mais tarde, em termos fisiológicos, ao equilíbrio dos humores.

Os quatro humores são quatro fluidos que se pensa permear o corpo e influenciar a saúde físíca e espiritual. O conceito foi desenvolvido pelos antigos pensadores gregos por volta de 400 aC e posteriormente desenvolvido por Galeno. O comum das pessoas está num dos quatro temperamentos: colérico, melancólico, fleumático ou sanguíneo.

Durante a Idade Média na Europa, o termo latino complexio serviu como a forma traduzida da palavra grega crasis, que significa temperamento. O termo “temperamento” refere-se ao equilíbrio das qualidades de quente, úmido, frio e seco; cada corpo humano tem uma mistura diferente dos elementos. Assim, os Citas, que viviam num clima frio, eram considerados mais frios e úmidos; os Etíopes eram mais quentes e secos. A compleição foi definida como “aquela qualidade que resulta da interação mútua e interpaixão das quatro qualidades primárias contrárias que residem dentro dos elementos. Esses elementos são tão minuciosamente misturados que cada um tem uma relação muito íntima entre si. Os seus poderes opostos conquistam e tornam-se conquistados alternadamente, até que se atinja uma qualidade uniforme em todo o conjunto: esta é a compleição”.

Como escreve Matthew Simon: “Visto que serviu como um conceito fundamental, não apenas na fisiologia, mas também na patologia e na terapia, a teoria da compleição forneceu um suporte importante para a ideia de que a medicina constituía um corpo de conhecimento unificado e racional.” Por observação e julgamento, os médicos medievais determinavam a compleição adequada do indivíduo quando saudável. O corpo estava saudável quando tudo estava em equilíbrio.

A compleição é considerada como um indicador do caráter de uma pessoa. A obra espanhola conhecida como Corbacho, escrita por Alfonso Martínez de Toledo (c. 1398 - c. 1470), inclui um capítulo denominado "De las complexiones". Nele, ele descreve as personalidades dos seres humanos de compleições variadas: "Há outras que são melancólicas: essas pessoas correspondem à Terra, que é o quarto elemento, que é frio e seco. Essas pessoas estão sempre zangadas, sem senso de tato ou moderação... Elas não têm sentido de temperança em tudo que fazem, e apenas batem com a cabeça contra a parede. Elas são muito iníquas, petulantes, miseráveis...”

A compleição, no seu sentido original, chamou a atenção dos filósofos e dos teóricos musicais desde os tempos antigos até à Renascença e mais além, em relação ao equilíbrio mais favorável das 'qualidades' ou elementos a fim de curar e revigorar a alma: desde Pitágoras e do teórico musical Aristóxeno, por meio do diálogo Fédon de Platão, Aristóteles, Santo Agostinho na sua tese sobre a música e Tomás de Aquino; e no Renascimento florentino, Marsilio Ficino na sua obra sobre a imortalidade da alma, a Teologia Platónica.

Assim, há muitas referências que se infiltram nas peças e sonetos de Shakespeare derivados desse corpo de pensamento; particularmente na descrição de personagens importantes, e ao poder da música acima de tudo para 'encantar o peito selvagem', ajustar os elementos e restaurar o equilíbrio, a 'harmonia' da alma: os seus personagens clamam por música e são encantados ou restaurados por ela, e de ânimo elevado, podem ouvi-la no ar, ou sentir as suas harmonias imortais em todos os lugares.

Jacob Boehme

Segundo Jacob Boehme, em Das Quatro Compleições, a alma humana entrou numa habitação que lhe é estrangeira, o Espírito do Mundo:

«Toda a tristeza e todo o temor, quando o ser humano é atingido, em si próprio, pelo medo e pelo espanto, procedem da alma: porque o espírito exterior dos astros e dos elementos não se assusta, pois vive na sua mãe, que o gerou; mas a pobre alma, dentro de Adão, entrou numa habitação estrangeira, a saber, no espírito deste mundo, onde esta amável criatura está escondida e detida numa sombria prisão.» 1

O Espírito do Mundo tem quatro prisões onde mantém a alma humana prisioneira. Apesar de cada ser humano ter as quatro prisões dentro de si, a alma só está encerrada dentro duma delas. As quatro prisões são: 1) o Temperamento ou a Compleição Colérica que corresponde ao Elemento Fogo, 2) a Sanguínea que corresponde ao Elemento Ar, 3) a Fleumática que corresponde ao Elemento Água, e 4) a Melancólica que corresponde ao Elemento Terra:

«Ora, o espírito deste mundo tem quatro habitações, dentro das quais esta preciosa jóia (a alma humana) está encerrada. Entre essas quatro habitações há uma que se manifesta principalmente no ser humano, não todas as quatro de forma igual, e isto segundo os quatro Elementos (Fogo, Ar, Água e Terra), os quais cada ser humano tem dentro de si, e o ser humano é essa própria essência, excluindo a alma que não é essa própria essência, mas a alma permanece cativa nessa própria essência. Em todos os casos, só existe um desse locais, ou dessas formas, entre essas quatro, que tem o governo soberano da vida humana. Esses quatro locais chamam-se: 1) o Temperamento ou a Compleição Colérica, 2) a Sanguínea, 3) a Fleumática, 4) a Melancólica.» 2

Na alma humana, o olho que vê a luz divina está encerrado, por isso, só consegue ver a luz exterior do sol. Como a alma só vê a luz exterior, deixa entrar dentro de si as compleições exteriores do Espírito do Mundo:

«Quando uma dessas compleições predomina no ser humano, de tal forma que ele é complexionado nela, a pobre alma, que é como uma jóia preciosa, fica encerrada nessa habitação, e é obrigada, durante o tempo desta vida (se ela não conseguir atingir perfeitamente a luz divina) de se servir do luar do sol, porque o olho que vê a luz divina foi-lhe fechado por Adão dentro da fonte terrestre, onde ela entrou. A alma de Adão deixou entrar dentro de si as compleições exteriores, a saber, o espírito do grande mundo, dos astros e dos elementos.» 9

Apesar da alma e das compleições estarem ligadas uma à outra, durante o tempo desta vida, elas não têm a mesma essência:

«Ora, durante o tempo desta vida, elas habitam uma dentro da outra, a alma dentro das compleições, e as compleições dentro da alma, no entanto elas não se alcançam mutuamente na essência: a alma é mais profunda do que o espírito exterior, mas durante o tempo desta vida elas estão ligadas uma à outra, como o mundo interior e o exterior, apesar de um não ser o outro, assim, o espírito exterior também não é a alma.» 10

A alma, na sua substância, tem um grande desejo pela luz:

«Além disso, deve-se saber que a alma, na sua substância é uma fonte de fogo mágico da natureza de Deus Pai, um grande desejo pela luz: assim como Deus Pai deseja, desde toda a eternidade, com grande ardor, o seu coração, como sendo o centro da luz, e na sua vontade desejante ele a gera pela propriedade do fogo, como o fogo gera a luz.» 11

Esse desejo pela luz vem do centro mais profundo da alma:

«Ora, não pode haver fogo sem que ali esteja a raiz do fogo, como o centro ou a figura na natureza, que a alma também tem em si, e arde (tende com ardor) para sair das figuras em direção à natureza do mundo nebuloso, que se força na sua fonte ou no seu desejo até que o fogo se acenda: pois busca a liberdade, que é a luz, como se vê no livro Da Vida Tripla.» 12

Assim, a alma deseja a essência espiritual, a Virtude:

«Sendo a alma, portanto, um fogo faminto do espírito mágico, ela deseja a essencialidade espiritual, isto é, a virtude, pela qual ela pode conservar a sua vida ígnea e suavizar a fonte do fogo.» 13

Adão, na sua desobediência, voltou-se para o exterior, para o Espírito do Mundo. Cristo, fez-se homem para voltar Adão de novo para o interior, para Deus:

«Agora podemos entender muito bem como a alma foi desviada, em Adão pela desobediência, para o espírito deste mundo, e comeu do espírito do mundo exterior: e é por isso que Cristo se fez homem na nossa essência, para que ele introverta Adão novamente, pelo centro e pelo fogo divino, para a luz, que é o mundo da boa índole; isto, é o que foi realizado na Pessoa de Jesus Cristo.» 14

A alma começa a absorver o Espírito do Mundo, dentro das compleições, quando ainda está dentro do ventre da sua mãe:

«Mas porque a nossa alma, desde o ventre da nossa mãe, está voltada apenas para o espírito do grande mundo, dentro das compleições; assim, ela imediatamente come do espírito deste mundo, desde o ventre e até mesmo ainda dentro do ventre da sua mãe.» 15

A alma precisa de se alimentar: ou se alimenta da Essência de Deus no interior, ou se alimenta das compleições no exterior.

«A alma come carne espiritual, a saber, do espírito da figuração das compleições, nem sempre inteiramente da sua essência, mas de maneira mágica, é o seu abrasamento, a compleição neste fogo da alma torna-se parte da natureza da alma: é como a madeira e o fogo opostos um ao outro; (a compleição é a madeira, e a alma é o fogo) é preciso madeira para o fogo, ou seja, ou a compleição exterior, ou então uma essencialidade divina da Essência de Deus, é preciso que a alma coma de uma ou da outra, sem o qual ela morre, embora não seja possível que morra, pois ela é um desejo: mas onde há um desejo, há uma substância; o desejo faz uma substância para ele próprio.» 16

Conforme aquilo do qual a alma se alimenta, assim são as suas vontades e as suas ações:

«Agora é fácil compreender por que há uma grande diferença entre os seres humanos, tanto no que diz respeito às suas vontades quanto às suas ações. Pois, de acordo com aquilo que a alma come, e de acordo com aquilo que acende o fogo da sua vida, é assim que a vida da alma regula a sua conduta: se a alma se afasta da sua compleição para se voltar para o fogo do amor divino na essencialidade celeste, que é a corporeidade de Cristo segundo o mundo angélico luminoso: então ela come a carne de Jesus Cristo, isto é, a carne celeste, como sendo a sua essencialidade eterna da mansidão, da luz da Majestade, na qual o fogo de Deus Pai, no seu esplendor, forma uma Tintura, dentro dessa mesma essencialidade como na fonte da água de vida eterna, da qual Jesus Cristo fala quando diz que nos dará de beber dessa água de vida: é disso que o fogo da alma come, a saber, da essencialidade celeste e divina, que se converte na Tintura em sangue celeste, eu falo em sentido espiritual; é daí que a alma adquire uma vontade divina, e retém o corpo com rédeas, para fazer aquilo que ele não quer, que seria segundo a sua própria forma e o espírito deste mundo; na medida em que a compleição não deve reinar na alma, mas permanecer apenas na parte carnal, e aí reger o que concerne à carne e ao corpo exterior. Quanto ao ser humano, ele busca a palavra do seu Deus e suspira continuamente por ele: a sua inclinação é sempre falar de Deus, ele gostaria sempre de saborear cada vez mais a doçura divina; mas ele é encoberto e impedido de fazê-lo pela sua compleição, de modo que sempre há nele algum combate.» 17

Mas a alma e a compleição continuam sempre a combater:

«A alma luta contra a compleição, pois nesta vida elas estão ligadas entre si, e a compleição luta contra a alma. A compleição desejaria sempre entrar no fogo da alma e acender-se lá, para viver bem: pois quando a alma come da palavra de Deus, a compleição segundo a vida exterior cai como que em fracasso, e fica como que cativa, embora viva em si mesma.» 18

Quando a alma volta as costas ao Espírito do Mundo no exterior e se volta para Deus no interior, a alma regressa ao Paraíso. No entanto, esta estadia no Paraíso dura pouco tempo devido aos estímulos do Espírito do Mundo ou da imaginação. A alma cai de novo, e fica atolada, até que a Sabedoria Divina lhe lembre de regressar de novo para a casa do seu Pai. Então, a Sabedoria Divina é proposta à alma como um espelho, a fim da alma a imitar, e assim encontrar o caminho de regresso à casa do seu Pai:

«Mas quanto à alma, ela está cheia de confiança, porque o amor de Deus, que só ele vem em auxílio da sua substância, quando ela se alimenta da essencialidade desse amor, introduz um triunfo e um gosto tão divinos na compleição, que ela fica toda trémula e cheia de uma alta exultação divina, e que revive todo o corpo, como se o Paraíso estivesse presente; mas isto não dura para sempre, pois a alma logo se encontra coberta com alguma outra coisa, que cai na compleição, ou que a imaginação externa do espírito deste grande mundo introduz nela, da qual coisa se forma um espelho, e ela começa a imaginar nele: e assim, ela sai do espírito de Deus, e muitas vezes fica atolada, a menos que a Virgem da Sabedoria Divina a lembre de voltar, a qual Virgem é proposta à alma como um espelho.» 19

A alma deixa-se seduzir por tudo o que o Espírito do Mundo introduz nela, através da imaginação:

«Quando a alma imagina na compleição, e quando ela come lá, desviando-se da palavra e da vontade de Deus, então ela age de acordo com a propriedade da compleição e ela recebe tudo o que os astros lançam dentro da compleição; tudo o que o espírito deste grande mundo introduz nela pela sua imaginação. Ela deixa-se deslumbrar pelos desejos da compleição em todas as coisas externas, em tudo o que o mundo das palavras e das obras faz: o desejo da compleição em introduzir essas coisas no fogo da alma, com as quais o fogo da alma arde.» 20

Quando a alma se afasta do amor de Deus, torna o seu fogo totalmente tenebroso:

«Pode-se ver aqui, como todas as más obras e ações queimam no fogo de Deus Pai, no qual a alma se encontra: porque tudo o que não está em conformidade com o amor de Deus, o amor não pode recebê-lo. Além disso, encontramos aqui o que é e no que consiste o pecado, como Deus fica irritado, quando o ser humano, pelo fogo da sua alma ou pela sua vida, introduz nela as abominações que o ser humano está acostumado a cometer, as quais afastam a alma do amor de Deus, e tornam o seu fogo totalmente tenebroso em comparação com a sabedoria e luz divinas.» 21

A alma só pode regressar a Deus pelo caminho do arrependimento sério:

«Pois o Espírito de Deus não entra no arder dum fogo, nem numa vida, cheia de abominações, até que a alma se retire novamente e se lave na água da vida eterna, o que é feito pelo arrependimento sério: é lá que ela é renovada no fogo da misericórdia divina, e no Espírito Santo, como uma criança recém-nascida, e ela começa a beber novamente desta água, e ela vive com Deus.» 22

Em conclusão:

«Uma vida sóbria é muito benéfica para ti: vigiar e orar sempre, e viver continuamente no temor de Deus, são coisas que desviam todas as más influências dos astros (do Espírito do Mundo). Pois aquele que vive segundo os astros, vive como um animal no mundo; mas quando o temor de Deus está impresso no seu coração, a alma passa a reinar sobre a vida externa e constrange-a à obediência; se isto não acontecer, a compleição torna-se na senhora da alma e no seu guia: e embora a alma não possa conduzir-se pelas suas próprias forças, no entanto, a compleição apresenta-lhe o seu espelho elementar e astral, pelo qual a alma se deixa deslumbrar e surpreender.

É por isso que o ser humano se deve tornar num ser humano e não num animal: deve reinar como ser humano com a alma, e não com o desejo da compleição; assim, ele poderá obter o bem mais soberano e eterno, a partir de qualquer compleição em que se encontre atualmente.

O diabo tem sempre prazer, qualquer que seja a compleição onde o ser humano se encontre, se ele desejar viver segundo os astros.

É, portanto, com muita razão que São Pedro diz: sê sóbrio e vigilante, pois Satanás, nosso adversário, anda ao nosso redor como um leão que ruge, procurando a quem possa devorar. 1 Pedro, 5,8. Resiste-lhe, no temor de Deus, e nunca tenhas confiança nele. Ó Senhor, tu és o nosso Refúgio!» 121-124

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